Site Meter

3.5.15

A MARCA DO WHISKY


E não é que, ao primeiro toque, a medo, a pensar, vai fazer-me mal, já não devo gostar, que ideia parva, a boca se encheu de um ardor intenso, de um picante a atacar despudoradamente as gengivas, a língua, o arco do palato, e logo logo a abordar a garganta, a descer pelo peito, por fora ou por dentro dele, era o mesmo, a desprender vapores de antigas destilações, de antigos amores. Um festejo inesperado, secretamente desejado, um retorno fugaz, palpável, à juventude, ao tempo da transgressão, do desafio, da atracção quase fatal pelo proibido, pelo desejo anunciado de plenitude e sofrimento. O tempo de pecado, diziam os beatos de vários deuses, que os ateus sorriam, sem aplaudir, sem se atrever. O sabor do whisky a trazer de volta, da arca dos segredos, intocada, a espessura do fumo dos cigarros, muitos cigarros, num acende apaga nervoso, maço atrás de maço, até à tosse, até ao beijo, só o beijo a interromper o fumo, a desfazer o nervosismo dos dedos, a refazer o poder anestésico da concha das mãos em rosto alheio. Entre um e outro beijo, a mão fechada sobre o bojo do copo de vidro grosso, as pedras de gelo a tilintarem, on the rocks, dizia-se, as borbulhas da água, de castelo, dizia-se, bolhinhas malandras a rebentarem no lábio superior, na flor das narinas, num festim de sensações que a levavam a fechar os olhos, a agitar o ar em frente ao rosto, com a mão de dedos curtos, de unhas cortadas rente, quase menina, quase. Pousados os copos, apagados os cigarros, dançava-se, de corpo e rosto ardendo, amando, amando-se, no embalo manso e húmido da música, cantarolando baixinho, respirando muito, fora do compasso da música, fora do compasso do mundo. Abraçavam-se, abraçavam a hora e sabiam já que nenhuma história havia de os acolher. De manhã, cansados do amor, um fastio a anunciar-se no tremor dos ombros, haviam de despedir-se, um beijo leve, depois telefono, sim, a rua com dois sentidos, o dia cinzento, talvez a noite com whisky. De outra marca.

Tão depressa não repete a cena do whisky ao serão. Acordou na manhã seguinte com a boca seca, amarga, um incómodo no estômago. Ao longo do dia, muitas vezes se interrogou sobre o nome da boîte, sobre a marca do whisky. Do nome dele ainda se lembra, sem grande certeza. José Manuel? Carlos Manuel?

Licínia Quitério

Sem comentários:

Acerca de mim

Também aqui

Follow liciniaq on Twitter
Powered By Blogger
 
Site Meter

Web Site Statistics
Discount Coupon Code