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8.5.15

O RACIONAMENTO


Eu era muito pequena quando a guerra acabou, mas lembro-me bem do "racionamento", essa palavra que andava de lar em lar, de boca em boca, e que para mim significava um divertimento diário. Era-me permitido recortar uns quadradinhos de papel azul claro onde estava inscrita uma data e um qualquer número que queria dizer "pão". A minha mãe dizia-me quantos quadradinhos naquele dia eu iria entregar ao padeiro que nos trazia o pão à porta. Lembro-me do boné dele, do chiar da verga do cesto, do sorriso dele a receber com a sua grande mão os quadradinhos da minha mão tão pequenina. Cada família recebia um determinado número de senhas que representavam a ração permitida para os géneros alimentícios. Eu só conhecia bem as senhas do pão, mas havia outras, as do açúcar, as da manteiga e não sei que mais. Aquilo para mim era a guerra e era um tanto divertido. Lembro-me, sim, até porque eu já sabia ler, de notícias que falavam de prisioneiros e de bombas e de ouvir pronunciar lá em casa "campos de concentração", coisas que eu não fazia a mínima ideia o que fossem, mas sei que disso se falava com ar muito triste. Lembro-me de virem para a minha terra umas meninas e os pais delas que tinham estado em Timor e lá tinham sofrido grandes males, como comer cobras, porque outra comida os japoneses não lhes davam, e disso nunca mais me esqueci, e durante algum tempo julguei que os habitantes de Timor se chamavam japoneses. Quando a guerra acabou, o meu pai foi a Lisboa, com amigos, a um almoço de festa na embaixada americana, e, quando voltou, vinha muito contente e até tinha fumado um charuto e a minha mãe dizia que pivete. Lembro-me muito bem de ele contar que um senhor lá da terra tinha querido ir ao almoço e os amigos do meu pai não deixaram, o que eu achei muito esquisito. Só alguns anos depois vim a saber que o senhor tinha sido "colaboracionista", e estava muito rico porque negociara sucata com os alemães, e o meu pai e os amigos não perdoavam essa sujeira. 
Faz hoje setenta anos que a guerra acabou. Eu ainda cá estou, e de verdade pouco mais aprendi sobre as razões do que aconteceu no mundo quando eu era tão pequena. Talvez só tenha percebido melhor quando um dia, muito mais tarde, visitei Auschwitz e li Paul Celan. Mesmo assim, por muitos filmes vistos, por muitos livros lidos, por muitas conversas havidas, nunca entenderei as guerras que são tão más e estão sempre à espera de renascer.

Licínia Quitério

foto da net

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