A Dona Cândida tinha joanetes. Era para onde eu mais olhava quando ela vinha fazer a sua visita anual. A Dona Cândida passava o Verão em casa da minha avó que lhe cobrava uma quantia simbólica pelo alojamento e que a Dona Cândida fazia questão de pagar, coitada da Dona Adelina, era o que mais faltava, bem basta o favor, é só para a água e a para a luz. A Dona Cândida era solteira, solteirona, diga-se, que já ia avançada na idade, uma velha muito velha, no meu entender de criança .Vivia para os sobrinhos que eram as pessoas mais inteligentes, mais bonitas, mais bem educadas deste mundo, filhos da sua irmã e do seu cunhado, só poderiam ter saído assim, umas jóias. Na minha família e em famílias amigas, os sobrinhos da Dona Cândida eram motivo de muitas citações e boas risotas. Estou a vê-la, com o lenço de seda amarrado debaixo do queixo, a cobrir o cabelo ralo que à noite prendia com uma rede, segundo a minha avó contava. Voltando aos joanetes, que eu até então nunca tinha visto, aquelas redondezas a saírem por entre as tiras dos sapatos, de presilha em volta do tornozelo e salto de pião, prendiam-me a atenção e cheguei a pensar que atrás da redondeza um dia apareceria o dedo todo, coitado dele, forçado à contenção pelas tiras de couro beije. Na família e nos amigos, comentavam-se os exageros da Dona Cândida, não só no que às virtudes dos sobrinhos diziam respeito, mas também às suas histórias de pretendentes rejeitados que ninguém conhecera, entre os quais ela contava o príncipe Dom Afonso que um dia, passando de carruagem no Rossio, lhe tinha quase atirado com os cavalos para cima, só para lhe chamar a atenção. A Dona Cândida devia ser muito velha mesmo, visto que se referia ao tempo dos reis, sua majestade para cá, sua alteza real para lá, num embevecimento que lhe punha um sorriso desajeitado no rosto a que a minha mãe, irónica, chamava “cara de grão-de-bico”, mas isso eu não podia repetir, nem pensar. Guardo o cheiro do pó de arroz da Dona Cândida, um cheiro doce e velho, como ela, menina para sempre, a efabular histórias dos seus namorados sonhados, tia extremosa dos queridos sobrinhos, que nos visitava nos meses de Verão, chegada da grande cidade com que eu começava a sonhar.
15.1.17
JOANETES
A Dona Cândida tinha joanetes. Era para onde eu mais olhava quando ela vinha fazer a sua visita anual. A Dona Cândida passava o Verão em casa da minha avó que lhe cobrava uma quantia simbólica pelo alojamento e que a Dona Cândida fazia questão de pagar, coitada da Dona Adelina, era o que mais faltava, bem basta o favor, é só para a água e a para a luz. A Dona Cândida era solteira, solteirona, diga-se, que já ia avançada na idade, uma velha muito velha, no meu entender de criança .Vivia para os sobrinhos que eram as pessoas mais inteligentes, mais bonitas, mais bem educadas deste mundo, filhos da sua irmã e do seu cunhado, só poderiam ter saído assim, umas jóias. Na minha família e em famílias amigas, os sobrinhos da Dona Cândida eram motivo de muitas citações e boas risotas. Estou a vê-la, com o lenço de seda amarrado debaixo do queixo, a cobrir o cabelo ralo que à noite prendia com uma rede, segundo a minha avó contava. Voltando aos joanetes, que eu até então nunca tinha visto, aquelas redondezas a saírem por entre as tiras dos sapatos, de presilha em volta do tornozelo e salto de pião, prendiam-me a atenção e cheguei a pensar que atrás da redondeza um dia apareceria o dedo todo, coitado dele, forçado à contenção pelas tiras de couro beije. Na família e nos amigos, comentavam-se os exageros da Dona Cândida, não só no que às virtudes dos sobrinhos diziam respeito, mas também às suas histórias de pretendentes rejeitados que ninguém conhecera, entre os quais ela contava o príncipe Dom Afonso que um dia, passando de carruagem no Rossio, lhe tinha quase atirado com os cavalos para cima, só para lhe chamar a atenção. A Dona Cândida devia ser muito velha mesmo, visto que se referia ao tempo dos reis, sua majestade para cá, sua alteza real para lá, num embevecimento que lhe punha um sorriso desajeitado no rosto a que a minha mãe, irónica, chamava “cara de grão-de-bico”, mas isso eu não podia repetir, nem pensar. Guardo o cheiro do pó de arroz da Dona Cândida, um cheiro doce e velho, como ela, menina para sempre, a efabular histórias dos seus namorados sonhados, tia extremosa dos queridos sobrinhos, que nos visitava nos meses de Verão, chegada da grande cidade com que eu começava a sonhar.
Licínia Quitério
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3:46 da tarde
O PESO
Com mais peso menos peso
lá vamos levando a vida
leveza é nosso destino
os anos, nossa medida
Licínia Quitério
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10:06 da manhã
12.1.17
MEDOS
Ela tem medo. Do dia, começou menos mal, mas nunca se sabe como acaba. Da noite, não se vê livre das insónias. Deste Verão quente como não há memória, a calamidade dos incêndios que nada poupam. Deste Inverno, morno, só pode trazer o diabo no ventre, as gripes que o digam, para não falar nas pneumonias.
Ela tem
medo. Do mundo, que anda tão perigoso, não tanto por ela, mas pelos filhos,
pelos netos que hão-de vir. Já não pode ouvir notícias de desgraças, todos os
dias. Melhor seria não ver nem ouvir, mas ela espreita a televisão, de passagem,
para dizer, está tudo doido, é o que é.
Ela tem
medo. Das informáticas, do progresso que só traz maldade, nunca se viu tanta violência.
Ela tem
medo. Das doenças que andam por aí, não poupam ninguém, gente tão nova a morrer,
dantes era tudo mais saudável, só se come porcaria.
Ela tem
medo. De viajar, com este horror das bombas e dos atentados, melhor ficar, mas
já não há lugares seguros, gente malvada em todo o lado.
Ela tem medo.
Dos ladrões. Reforçou a fechadura da porta, os trincos dos estores, já ninguém
confia em ninguém, assaltos não faltam, até no bairro dantes tão sossegado, já
não se pode trazer um fiozinho de ouro, aparece logo um meliante.
Ela tem
medo. Do modo como andam a educar os jovens, só faltas de respeito, só palavrões,
que belos adultos hão-de vir a ser. Pobres pais, para não falar dos avós,
coitados, querem lá saber dos velhos.
Ela tem
medo. De viver, de morrer. Do amor, que já lá vai e não deu certo, nem é bom
falar. Daquele cavalheiro que a anda a rondar na internet, sabe lá quem é, os
retratos enganam muito, ainda se fosse como parece.
Ela tem
medo. Da solidão, embora não saiba o que isso é. Graças a Deus tem muito com
que se entreter, um tricô, as mãos ocupadas é bom, umas palavras cruzadas, a
cabecinha ocupada é bom.
O pior são
as noites. Malvadas insónias.
Licínia Quitério
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6:09 da tarde
11.1.17
SOL DE INVERNO
Ao Sol de Inverno, as velhas mulheres procuram luz e algum
calor sentadas nos bancos de pedra, sem encosto, postos ali para ver e andar.
Se não fosse o Sol que tanto nos visita, este país morria muitas vezes do frio
que alaga espaços públicos onde falta o verde, a madeira, a forma do aconchego,
quase assépticos, quase.
Licínia Quitério
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5:32 da tarde
7.1.17
AS MENINAS
As meninas cresceram e tanto que já apareceram novas
meninas. E também há meninos pequenos e meninas pequenas e meninos grandes,
muito grandes. A gente ganha heranças. A mim calham-me heranças, por diversas
vias, de gente e mais gente. Uma das meninas que herdei faz hoje anos. Tão depressa
cresce esta minha gente. A seguir a sua pressa, a minha velhice ganha lentidão
e doçura. Parabéns, Menina!
Licínia Quitério
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8:25 da tarde
6.1.17
DIA DE REIS
- Vê lá
estas flores que me ofereceram. Tão bonitas, não são? Eu não me recordo de as
ter visto em amarelo.
- Não
conhecias? No meu quintal tenho montes delas, montes.
- Estou a
precisar de uma receita de bacalhau que não seja muito conhecida, para variar.
Sabes de alguma?
- Precisas?
Faz como eu. Eu invento as minhas receitas e, não é para me gabar, mas saem
sempre pratos muito apreciados.
- Ando com
umas dores de cabeça há dois dias que nem te conto.
- Escusas de
contar. Dores de cabeça tenho eu quase todos os dias, mas não me queixo. Não é
por me queixar que as dores passam mais depressa.
- Já
reparaste no meu novo corte de cabelo? Que tal? Fica-me bem?
- Para ser
sincera, não gosto muito. Sabes que eu sou assim, muito sincera, quando gosto,
gosto, quando não gosto, não me ponho com intrujices. Se tivesses um rosto mais
redondo…
- Como o
teu?
- Não digo
tanto, mas parecido, talvez…
- O meu neto
mais novo está muito engraçado, muito esperto. Sabes com que é que ele se saiu
ontem?
- Ah as
crianças são todas muito engraçadas, muito espertas, principalmente as nossas,
mas conta lá a habilidade do menino.
Pronto, não
fiques chateada, até parece que eu disse alguma mentira. Acredita que se eu
fosse falar das gracinhas dos meus nunca mais me calava.
- Queres uma
fatiazinha de bolo-rei? Comprei porque gosto de ter em casa neste dia.
- Eu não
ligo nenhuma a dias. De reis ou de presidentes, são todos iguais, mas aceito.
Ah não se
fazem bolos como os de antigamente. Olha-me para isto, nozes nem vê-las, e a
massa, desmaiada, coitada, cortaram-se nos ovos.
- Lembras-te
de quando traziam prenda?
- Não me
lembro eu de outa coisa. Saía-me sempre a mim e os meus irmãos roíam-se de
inveja.
- Pois a mim
calhava-me a fava muitas vezes. Cada um é para o que nasce.
- Não sou
nada dessa opinião. A vida é a gente que a faz. Há quem tenha jeito, há quem
não tenha.
Bem, vou
andando que a minha vida não é só conversatas moles, mas já agora levo outra
fatia para o caminho.
- Leva, sim,
uma ou duas.
Leva, para
ver se adoças esse amargo com que nasceste.
(Segunda
parte da fala, por detrás da porta fechada)
Licínia Quitério
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1:28 da tarde
2.1.17
GATO PINGADO
O gato entrou de rompante e logo invadiu a mesa, estonteado,
a afirmar que eu tenho de escolher entre ele e o ecrã, por momentos que seja.
Passo-lhe a mão pelo lombo, a tentar sossegá-lo e a pedir que se afaste. A mão
sente o pelo molhado, borrifado apenas, e percebo assim que começou a chuva lá
fora. É um "gato-meteo", penso. Diz-me do sol escaldante com a
quentura do corpo esguio e luzidio, do vento, quando o pelo se dessarruma e
arrepia e o gato parece mal-disposto. Posso saber de todas estas condições se
olhar pela janela da frente e vir como se vestem e comportam os passantes,
posso olhar pela janela das traseiras e observar a pele das plantas, brilhantes
de sol, molhadas de chuva, agitadas de vento. As pessoas, as plantas, o bicho,
o meu universo de sensações e entendimentos.
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Licínia Quitério
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11:35 da manhã
1.1.17
SOBREPOSIÇÕES
De regresso a lugares que são meus, porque deles guardo o
desenho e as cores, sobrepostos no correr dos anos.
Licínia Quitério
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Licínia Quitério
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