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19.7.14

DANÇAS


Na penumbra da sala, veio-lhe à memória o primeiro nome dele. E logo os apelidos, três. O rosto magro, os olhos a trespassarem-lhe o corpo, os dedos esguios num toque suave na cintura, a fazerem-na estremecer, a voz ao ouvido, enquanto dançavam, numa saborosa clandestinidade. Foi há tanto tempo. Passaram décadas, cada um seguiu a sua vida, raras vezes tornaram a ver-se, um telefonema por uma morte, outro por outra morte. Foram somando mortes e filhos e netos. Da última vez que se viram, numa festa do liceu, ele tinha engordado, deixara de fumar porque as artérias tinham entupido e ameaçado o indesejável. Os olhos ainda lhe trespassaram o corpo, os dedos tocaram-lhe a cintura ao de leve, amável, a indicar-lhe o caminho, mas ela já não estremeceu. 
Foi no dia em que voltou a casa e a encontrou invulgarmente fria que recordou o nome dele. Foi às agendas antigas, amarelecidas, guardadas na gaveta dos papéis inúteis, e procurou, procurou. O nome lá estava, o apelido em primeiro lugar, que ela sempre fora metódica nos seus apontamentos, um pouco esborratada a tinta pelas humidades do tempo, da casa, dos corpos. Um número  de telefone à frente, esse bem legível, de poucos algarismos, que já teria sido mudado, acrescentado, decerto. Pediu ao neto que tentasse na internet saber o número actualizado. Ele ainda refilou, a afirmar a rebeldia, mas na mesma tarde telefonou-lhe. Tinham sido adicionados três algarismos, no princípio. O nome do assinante era o mesmo, sim senhora. 
Hesitou bastante em ligar, achou-se velha tonta, julgou a ideia uma indignidade para com a memória do seu homem  que partira há muito, pensou no que diria se fosse a mulher dele que atendesse, sentiu-se corada e menina, em clandestinidades de outrora.
Foi breve o diálogo, entrecortado por breves silêncios, de uma e de outra parte:
- Desculpe, é de casa do senhor J G M T?
Uma voz jovem de mulher perguntou:
- É, sim. Quem fala?
- Uma velha amiga. Ele está?
- Não, o avô não está. 
- Ah! Gostava de lhe falar. Fomos amigos há muitos anos.
- Pois. O avô está agora num Lar. Se quiser, digo-lhe onde é. Tem visitas da parte da tarde.
Disse Ah! e desligou. 

Com certeza os olhos dele já não lhe trespassariam o corpo, agora tão desajeitado, nem os dedos lhe guiariam a cintura que engrossara.  Nunca as danças se repetem. Só as dores.

Licínia Quitério

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