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21.8.13

AS PAREDES AZUIS



   


   Na época, usava-se pintar as paredes de cores fortes. Ele mandou pintar a sala de azul, azulão de mar aberto. Comprou sofás de napa vermelha, móveis em módulos ajustáveis, de linhas rectas. A kitchnette simpática, funcional. Ligou a aparelhagem e ouviu-se música francesa. Na relação com a Conceição, que Nanette se chamava, viera-lhe o interesse pela França. A música, os livros, até a comida. Aprendera a fazer omeletas que, explicava, tinham de ser “baveuses” no interior. Joana olhava em redor da sala, estranhando as cores, os sons, um tremor desusado nas ancas, uma súbita vontade de não estar ou de ficar para sempre. Léo vociferava “je pisse, j’éjacule”. Ele preparava dois uísques. Puro para ele, com soda para ela. Estava calor, o calor das noites belas e ardentes da cidade, nos seus abismos e clausuras. Transpiravam trinta anos de vida, de espanto ainda. Transgrediam, tremiam, mas não se detinham. Dançavam e bebiam e bebiam e dançavam. “Je t’aime moi non plus”, susurrava Jane Birkin. Bem se podia dizer que choravam, tremendo nas cordas finas da ternura. Sabiam da noite única impressa nas paredes azuis, no sofá vermelho, no ligar e desligar do pequeno frigorífico, no chiar do elevador, no tilintar do gelo nos copos.
   No dia seguinte, ele foi buscá-la ao emprego, para almoçarem. Tirou do bolso um gancho de cabelo e disse: deixaste-o no sofá, tens de ter mais cuidado. Sentiu a censura, cortante, a boca fina no beijo rápido, a compressão dos malares.
   Mesmo depois de cortar o cabelo bem curtinho, não voltou à sala com paredes azuis. Houve outras salas, até deixar de haver. Entretanto, a transgressão encorpava nas veias da cidade.


Licínia Quitério

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