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30.11.08

O PROGRESSO, DIZEM


Há muito tempo que não se atrevia a subir a rua. Os anos pesam e dias há em que o peso se concentra todo nas pernas. Subir é arrastar uma massa desmedida, amálgama de lembranças e anseios e estremecimentos vários. O Sol, menino atrevido, chamou-o, com aquele calorzinho bom que afaga e promete. Ao sair a porta, disse para dentro para a companheira: Se eu me demorar, não te preocupes. É que me apetece sentar-me um bocado no meu banco do costume. Uma saudade dos velhos plátanos da praça agitou-lhe as mãos que recolheu nos bolsos do blusão. Sentia-se bem. De tão pouco se pode fazer o contentamento de um homem. Na súbita pressa de chegar, nem deu pela aproximação do outro. Um aperto de mão, confirmado por outro aperto no cheio do braço. Há quanto tempo, homem? Temos sentido a tua falta. E agora que andamos todos perdidos, ainda nos lembramos mais das nossas discussões. Perdidos? Sim, desde que começaram as obras. Nem te conto. Anda ver. As árvores estavam velhas, doentes, dizem. E as raízes davam cabo da rua. E davam cabo dos prédios. Já não há árvores. Houve quem chorasse quando as máquinas avançaram. E depois eram os pardais. Aquela gritaria à tardinha. E a sujidade que se juntava. E os gatos à noite por ali a rondar. Já não há pardais. Nem gatos. Agora vieram os ratos. Hão-de dar cabo deles, dizem. O empedrado novo está bonito. Tudo muito limpinho, muito certinho. Era uma pena haver folhas de árvores a sujá-lo, dizem. Os bancos foram retirados. Aqueles velhos por ali sentados, às vezes soltando palavrões, de bengala e beata ao canto da boca, davam mau aspecto. A quem? Às pessoas que vêm de fora. Já os viram sentados nos degraus da estátua. Teimosos. Parece que a estátua também vai mudar de sítio. É o progresso, dizem.

Quando voltou a casa, a companheira admirou-se. Já? Resmungou: A seguir vão levar os velhos, dizem. E bem alto: Tão cedo não volto à praça. Arranja-me um café bem quente.


Licínia Quitério

4 comentários:

Anónimo disse...

Olá
A fotografia,está lindíssima
Os "dedos" das árvores,apontando aos céus,talvez num derradeiro apelo para que as não arrancassem.

Mas não,o "progresso" ou simplesmente a mudança(lembro-me agora que em muitos aspectos se evoca a modernidade,para aplicar receitas bem antigas,retrocessos),ditam a sorte ás pobres e velhas árvores.
Os "velhos",também já reparei neles,sentados no degráu da estátua e lembrei-me de outros locais como em Lagos,na estátua de D. Sebastião(Cargaleiro)
E se cada"velho" levasse o seu próprio banquinho??
Os pardáis,à tardinha,nas tardes do fim de Verão,ás centenas(?)num chilrear estridente que para mim,humano,era alegre.Certamente,conversavam entre eles sobre o seu dia de sol a sol.
Havia "grunhos" que se entretinham a espantá-los para verem a "núvem"levantar vôo em aflição.
Pobre entertenimento daqueles que se acham os "donos da natureza".
Agora já não têem com que se entreter..
À praça,irei voltar,embora não olhe muito para ela.
Para o que hei-de olhar sempre(se entretanto não o mudarem de sítio em nome do progresso,é para o Covento.
J.A.

bettips disse...

Ah...contemos as árvores perdidas, os afectos cortados, os pardais alvoroçados, os velhos pelas esquinas....Contemos da inquietação dos buracos, vazios de raízes, dos homens de capacete, dos dentes alvares das serras mecânicas.
Contemos da indiferença dos passantes.
E a dor nos ouvidos é ensurdecedora, o pensamento que nos conhece, estrangula-se.
Agarramo-nos naufragados a uma tábua velha, a uma pedra suja de tempo.
Tantos e tantas - algum dia seremos nós.
Vamos tomar um café aqui ao lado, Licínia?
Contar-te-ei da "remise" dos eléctricos amarelos e risonhos, do brilho das madeiras, que nos levavam à praia e ao liceu; quando andar a pé se juntavam tostões para um bolo com creme, um mil-folhas.
Mando-te depois o Palácio da Música, o progresso milionário para os cultos e estrangeiros, para trazer basbaques "de fora" a deglutir a novidade...
Ah! que democrático que a arte, a música, a beleza seja assim seleccionada e falsamente abrangente.
Beijinho

M. disse...

Bem escolhida a música dos carrilhões para acompanhar este teu texto cheio de sensibilidade e de observação. E acima de tudo do olhar humano que tens sobre o mundo.

Justine disse...

As árvores parecem pedir socorro: quem nos livra dos destruidores de raízes??
Sensível e melancólico, o teu relato. Mas belo. E os carrilhões, espero que nunca sejam substituídos...
Beijo

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