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22.8.08

O TREVO - 3.ª e última parte


Naturalmente, Jesus não vivia somente de botânicas e de sonhos. Tinha o ofício de caiador de casas e de muros que lhe assegurava o sustento e o mais que permitisse vidinha humilde, mas tranquila. Trajava sempre de branco, a cabeça protegida dos pingos da cal por um lenço a que quatro nós nos cantos conferiam forma achapelada. Era meticuloso nas suas caiações. Revia-se com orgulho nas faixas de azul berrante com que enfeitava os rodapés e as molduras das janelas das casas branquinhas. Subia devagar a escada-de-mão, a fazer lembrar lagartixa sonolenta amarinhando em tronco de árvore encharcada de sol. Esgueirava-se assim até aos beirais de telha vermelha, belamente recortados, para os forrar de branco, não sem antes os ter raspado das sujidades da passarada e dos velhos líquenes verde-amarelados.

Os anos passavam por Jesus Veredas Bicho ou, melhor dizendo, Jesus passava pelos anos, gastando-se neles. Os baldes de cal que transportava pareciam mais pesados, tornando-lhe os braços mais alongados, as mãos a roçar os joelhos. As costas encurvavam-se, os ombros estreitavam-se. As crateras das bexigas viraram casulos esbranquiçados, à força de abrigarem tanta cal. Começou a sentir tonturas que atribuía ao mau funcionamento da vesícula. Fazia chazinho de boldo. Três colheres de café para um púcaro de água. Deixava levantar fervura, moderava os ímpetos do lume e ficava a vigiar, não transbordasse, cinco minutos bem contados. Depois era só deixar arrefecer um pouco e coar por um pano linho que tem boa rede e não larga fios. Bebia um copo da infusão em jejum e outro ao deitar. Não havia melhor para livrar o interior dos maus humores que no fígado se albergam.

Aquele dia quente dos princípios do Verão, destinou Jesus a caiar uma casa bem bonita, piso térreo e primeiro andar, sita numa quintinha afável e rodeada por canteiros primorosamente ajardinados e orlados de buxo em devido tempo aparado. A casa era um bocadito alta e a velha escada-de-mão de Jesus Bicho um nadita baixa para chegar com desejado à vontade ao beiral de dupla telha, a indiciar desusada abastança do proprietário. Por isso, encostou a escada à parede da frente, experimentou a obliquidade consentida e verificou, com algum alívio, que era mesmo à conta para a pretendida missão. Teria apenas de esticar bem o braço e usar o pincel de cabo mais comprido. Tudo na vida tem remédio, pensou. E acrescentou: menos a morte. Sentiu um estranho formigueiro na cana do nariz que esfregou energicamente como a tentar expulsar algum agente intruso. Deitou uma olhadela em redor, aspirou com delícia o perfume dos goivos que nesse ano exibiam capitosas inflorescências e preparou-se para trepar a escada, lentamente, a mão direita nos degraus, um após o outro, a permitir os impulsos, a esquerda segurando o balde. A meio da subida, sentiu uma ligeira tontura. Esqueci-me de beber o chá esta manhã. Onde ando eu com a cabeça? Por um momento, sentiu-se apreensivo. Chegou ao topo, pendurou o balde com um gancho apropriado num dos extremos do último degrau, mirou de perto o beiral e aspergiu com o pincel embebido no leite de cal uma osga furtiva, ordenando em tom de esconjuro: Vai-te, peçonha! De novo o cheiro dos goivos, agora mais intenso, inebriante. De repente, sem querer acreditar, ouviu um chamamento que lhe pareceu nascido de um dos canteiros. Olhou para baixo, sentindo-se envolto numa nuvem de vozes ténues e de cheiros indecifráveis. Esforçou os seus pobres olhos a tentar focar o que quer que fosse que o atraía algures no meio dos goivos. O coração disparou numa batida célere e deixou de sentir o peso do corpo. Foi então que um estranho sorriso de pura felicidade lhe inundou o rosto. Sempre a sorrir, Jesus Veredas Bicho soltou a única mão apoiada na escada, abriu os braços feitos asas de gaivota e voou. Cá em baixo, rasteirinho, com os quatro corações de brinquedo, esperava-o o trevo dos seus sonhos. Jesus não se estatelou. Poisou, de mansinho, sobre as flores. A cabeça de lado, os olhos brilhantes como nunca, fitando com encantamento a folhinha da sorte que finalmente se mostrara. O sorriso de felicidade permaneceu mesmo depois de o levarem para um sítio muito branco, com gente vestida de verde onde lhe era perguntado: Aqui dói? Não. Nada lhe doía. Queria ir-se embora dali. Já não o podiam ouvir dizer: Ele está lá à minha espera. Curou-se e saiu do sítio branco e verde. Tanto quanto as forças lho permitiam, apressou-se até ao canteiro. Lá no fundo, temia ter tido uma visão. Como os santos cujas estampas colava no caderninho de folhas de papel grosso. Procurou, as mãos a tremer, os olhinhos a rolar. Viu-o. Lá estava, um pouquinho amachucado como ele, mas vivo. Deitou-se a seu lado, na cama macia de folhinhas. Deve ter dormitado. Quando despertou, tinha uma mão dormente. Abriu-a, a custo, e qual não foi o seu encanto quando viu que o trevo nela se guardara, numa oferta silenciosa àquele homem pequenino e míope, caiador de profissão e botânico por devoção, a quem puseram o nome de Jesus Veredas Bicho e que teve um sonho fechado na mão.

FIM


Licínia Quitério

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