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15.8.08

O TREVO - 2ª. parte



Jesus Bicho gostava muito de plantas. Ainda na escola primária, dedicava largas horas a cuidar dos seus pequeninos canteiros onde coleccionava ervinhas que tratava com desvelos maternais. A pouco e pouco, foi-lhes conhecendo os nomes, as formas, os cheiros, as fragilidades ou as insuspeitadas forças com que enfrentavam os tratos dos homens e dos elementos. Alegrava-se com o cheirinho doce da cidreira, com a frescura lavada da alfazema, com a estridência da cor da macela. Aprendera a conhecer-lhes as preferências por humidades ou securas, por asperezas de rocha ou molezas de aluvião. Tinha Jesus Bicho uma particular preferência pelas plantas baixinhas, discretas, como que a pedirem licença às grandes para as deixarem afirmar a presença. Regalava-se com as violetas que floriam às ocultas, na sombra fresca; com a simetria das formas galantes do polipódio, com as belas cabeleiras volantes do dente-de-leão, com o verde aveludado dos musgos natalícios. Para ele, não existiam ervas daninhas. Todas eram criaturas inocentes e benfazejas. Estudou-lhes as virtudes, entendeu as dádivas que propunham. Assim se tornou mestre em receituários, famoso pelos seus conhecimentos e pelos alívios que era capaz de proporcionar com tisanas e mezinhas. Tinha conseguido obter remédios para a espinhela caída, para o bucho virado, para as sezões, para os sapinhos e para o ermo dos bebés, para o flato, para a erisipela, para os panarícios, para o quebranto, para as frieiras e até para as mais teimosas pieiras do peito.

Era um homem quase feliz. Respeitado pelos seus saberes, era amiúde visitado por pobres desesperados em busca de melhoras, porém a troco de nada. Recusava-se a comerciar conselhos, a vender virtudes. Dizia, invariavelmente, quando lhe perguntavam quanto era: Melhore vossemecê que eu ficarei pago.

Tinha Jesus um sonho inconfessado. Entre as plantinhas de sua estimação, figurava uma apreciável colecção de trevos, com folhas e flores de vários tamanhos e coloridos. Gostava profundamente das suas folhinhas quando abertas em leque, a fazer equilíbrios contra o vento na ponta dos pecíolos longos e delicados. Simpatizava com as flores falsamente campanuladas, amarelas umas, rosa outras, que se fechavam em tubo para dormir e se espreguiçavam triunfantes às primeiras luzes da manhã. As mãos de Jesus catavam diariamente, com suavidade, as inúmeras folhas de trevo, todas elas tripartidas em corações de brincar. Enquanto tirava um bichinho de conta aqui, uma sujidade acolá, por detrás das lentes grossas, as continhas de colar giravam, giravam, perscrutando com minúcia aquele estendal de frescuras. Pacientemente, Jesus espiava a sorte que, acreditava, um dia se revelaria em forma de trevo de quatro folhas. Sim, uma daquelas plantazinhas transcenderia a sua própria natureza e, subvertendo os códigos originais, dar-lhe-ia o sinal da raridade guardado só para eleitos.


continua...


Licínia Quitério

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