Já passou tanto tempo desde o dia em que disseste “Vou, estou
farto disto”, sem mais nada, a despires o blusão e a atirá-lo para cima do sofá.
Voltaste a vesti-lo já estava escuro lá fora, a mala pequena a pesar-te no
braço, um casaco no outro braço. Ainda hoje repito “disto,
disto, disto”, sem conseguir decifrar de que é que te fartaste.
"Isto” não sou eu,
sempre tão presente, tão meiga, tão zelosa da tua saúde. “Isto” não é o nosso
filho, bonito rapaz, cheio de namoradas, de alguns defeitos, ou melhor, de
problemas, que a droga não é defeito, é uma fase má, vai passar, vais ver, não
roubou, não matou, não é o único, precisa do nosso apoio, não, não lhe grites,
não, não lhe batas, foge, filho, foge. “Isto” não pode ser o dia em que
desapareceu o dinheiro, não, não foi ele, foge, filho, foge que ele dá cabo de
ti. Ele andou na rua, um bocado perdido, mas voltava sempre para comer, o nosso
filho, magrito, não é “isto”, não é dele que te fartaste, nem da casa, sempre
tão limpa, arejada e agora nem aquele cheiro mau no quarto dele. A gente não se
farta assim do que nos rodeia, de quem nos ama, que ele gostava de ti, não te
odiava, mesmo quando dizia que morresses, que eras tu que não prestavas,
não era ele a falar, era a malvada que o agarrou.
Gostava de poder
dizer-te tudo, agora que ele não voltou, os mortos não voltam, agora que eu
fiquei, não sei bem se fiquei, se fui com ele, não sinto frio, nem fome, nem
sede, nem sono, parece que os mortos não sentem. Só gostava de saber o que
querias dizer com” estou farto disto”, ou talvez não queira, parece que os
mortos não querem, talvez eu não esteja morta, estou como tu, farta disto.
Licínia Quitério
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