Hoje bateu-me à porta alguém chegado de um tempo em que
todos eram velhos, uns mais do que outros, a não ser o Herlânder e a Neuza e os
que eram novos como eu. Só os velhos, uns mais do que outros, é que não pulavam
todo o dia e alguns ficavam muito sossegados nas cadeiras, com ou sem mesa,
calados ou a conversarem.
Hoje bateu-me à porta uma mulher daquelas mais velhas que já devia ser velha
quando eu, o Herlânder e a Neuza corríamos, rua abaixo, rua acima, e
gritávamos, porque só os velhos é que falavam baixo e devia ser por isso que
nós não os ouvíamos.
A mulher que hoje me bateu à porta tinha um lenço preto a
tapar os cabelos brancos que eu bem os vi a espreitarem por cima da testa. No outro
tempo, havia muitas mulheres com cabelos brancos escondidos em lenços pretos.
Eu, o Herlânder e a Neuza até nos ríamos delas que pareciam as bruxas das
histórias, mas não tinham vassouras. Algumas tinham só os cabos e não sabiam montar-se
neles, por isso andavam muito mal e nunca voavam.
A mulher velha que hoje me bateu à porta trazia um ramo de
flores parecidas com as que havia no quintal da minha avó e que agora já não se
usam. Disse-me se as queria comprar e eu fiquei admirada porque as flores do
quintal da minha avó não eram para comprar. Também não eram para roubar, mas
era o que eu fazia, sem ela saber, para dar à Neuza, que o Herlânder dizia que
flores eram coisas de menina e ele não era maricas.
Nem todos os dias aparecem a bater-nos à porta velhos de
outros tempos e eu até pensei em contar isto à Neuza e ao Herlânder, mas depois
é que me lembrei que eles já cá não estão e quem sabe se a Neuza já não corre
tanto rua abaixo rua acima e o Herlânder gosta de flores, sem medo que lhe
chamem maricas.
As pessoas mudam muito.
Licínia Quitério
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