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11.6.08

O ROUPEIRO (3º. episódio)

F. sobressaltou-se quando deu consigo a desejar com alvoroço a hora da bica. Em casa, ao serão, em frente ao televisor, não parava de pensar nos decotes em V pronunciado da Menina H., nem nas ancas reboludas, de movimentos largos a que os saltos altos marcavam a cadência. Era pequenina.”Mignone”, tinha ele aprendido a dizer. E nos balões de banda desenhada dos seus pensamentos mais íntimos já só a tratava por H., sem Menina.
Assim começou um caso que escaldou a vida morna do F. Dactilógrafo. Nem ele sabia explicar como é que, numa tarde de sol desmaiado de Outono, numa pensão baratucha de Almirante Reis, o F. se desforrou de tantos anos de abstinências forçadas, de sessões insípidas de sexo de sexta-feira à noite. A H. tinha ardores de trintona temperados com pudores de donzela. Embora dissessem que os prazeres da carne tinham a ver com o Inferno, F. achava que o corpo dadivoso de H. era uma bênção do Céu. Concluía, de bem para consigo próprio, que pecado seria recusar a felicidade na Terra. Acudia-lhe à ideia ingratidão de pobre rejeitando bife. E sorria, à boca pequena.
Para estupefacção dos colegas, F. abandonou o casaco verde seco e comprou farpela toda nova: um “blazer” azul escuro com botões prateados, calças beijes, sapatos de luva, pretos, reluzentes. A pasta de aluno de escola foi substituída por maleta de executivo, porém suficientemente espaçosa para transportar o almoço. Não havia dúvidas, o F. remoçara. Parecia até menos gordo e pesadão. Cantarolava baixinho, enquanto teclava. Usava água-de-colónia a inundar o escritório de frescura barata. Às piadas brejeiras, repontava: “Vocês não me digam nada. Eu ainda sou um homem novo, caramba! Onde é que está o problema?”. Não acedia a contar pormenores. Da vida lá em casa, nem uma palavra. “A minha mulher, coitadita, é uma santa”. Dava o assunto por encerrado, mão aberta a rasoirar os ares.
Com o decorrer das semanas, a H. tomara-se de atrevimentos. Vinha esperá-lo à saída, saltitante, cumprimentando com sorriso dengoso alguns colegas do F. a quem ele apresentara como “A minha amiga H”.
Comentava-se que ele ia deixar a mulher. Como iria descalçar aquela bota? Oxalá não se arrependesse. É que a H., bem vistas as coisas, não tinha lá muito boa pinta. Dizia-se por aí que tinha uma rodagem que Deus nos livre. Enfim, ele lá saberia as linhas com que se cosia.
Chegou o dia em que o F., com um ar misterioso, previamente ensaiado, confessou aos colegas mais chegados que pensava ir viver a tempo inteiro com a H. Era assim a vida. Tinham já tudo organizado. Uma casinha pequena, arrendada nos arredores, coisa muito modesta, quarto, salinha e pouco mais. Quase um amor e uma cabana, pois. Só faltava resolver o problema do roupeiro. A H. prezava o seu grande armário em que guardava a numerosa fatiota. Tinha lá aquele fraquinho pelos trapos. Gostava de se apresentar bem. Mas o roupeiro quase de certeza não caberia no novo ninho.
Preocupado com este pormenor de instalação, o F. passou a andar munido de régua, esquadro e até de um transferidor dos tempos angulosos da escola. Demorava-se a rabiscar desenhos, a anotar medidas, a fazer contas complicadas de cabeça, olhando o tecto com os olhos semi-cerrados. Ouviram-no mesmo telefonar a um amigo desenhador de máquinas. Andava com um pequenino problema. Talvez ele pudesse dar-lhe uma ajuda. Até se sentia envergonhado por ter de o incomodar por aquela ninharia. Quando desligou, uma ruga exibiu-se ondulante no sobrolho. “C’os diabos! Uma pessoa rebaixa-se a fazer um pedido de nada e é a resposta que leva. Qual? Ó homem, isso é querer meter o Rossio na Rua da Betesga. Um pateta, armado em engraçado”.
O tempo foi passando e alguém mais observador comentou que o F. andava soturno. Deixara de cantarolar e agastava-se quando tentavam puxar a conversa dos amores. Ali havia coisa. Algo não corria bem. Até que, num dia baço de Inverno, olhando a chuva miudinha que escorria pelas vidraças, riscando distraidamente com a unha o tampo da secretária, falando não se sabe se para si próprio se para os circunstantes, deixou cair num desalento: “Está tudo acabado. O roupeiro não cabe.”
Foi essa a razão por que a vida voltou à mansidão de outros tempos. As peças do xadrez retomaram no tabuleiro as suas casas de origem. Só o casaco verde seco não voltou a ser vestido. E, verdade, verdadinha, o olhar do F. não reganhou a moleza de antigamente. Bem lá no fundo, ficou uma faulhazita de lume mal apagado, denunciando a esperança num outro roupeiro, desta vez mais maneirinho.
Ainda ontem escreveu em maiúsculas, numa folha A4 que depois amarrotou e deitou, descuidado, para o cesto dos papéis: SOU UM HOMEM MUITO NOVO, CARAMBA!


FIM


Licínia Quitério

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