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6.4.08

DONA CLOTILDE (em folhetim)

Fascículo 1º.

A Dona Clotilde era madurona. O cabelo pintado de negro, avolumado por muita laca, com transparências indiscretas (peladas, não senhor, coisas dos nervos que apanhara). Os lábios, pintados de escarlate, ganhavam a forma de um coração em caixa de bombons. Passada que fora a beleza consentida pela frescura dos anos, ficara-lhe o ar de boneca de papelão abandonada em sótão, um pouco amachucada, mas ainda colorida e risonha. Mamalhuda, de perninha fina, sempre encavalitada em saltos altos, inclinava-se para a frente ao andar, lembrando um patito fora do charco. A propósito de alguma referência brejeira à abundância e proeminência mamárias, confidenciava, com indisfarçável orgulho, que, ao contrário de muitas mulheres da sua idade, tinha de usar coletes especiais, feitos por si, de forma a contrariarem a indiscreta tendência de subida dos peitos. Ao dizer “peitos”, corava ligeiramente. Vinham-lhe à memória elogios marotos do Tavinho.
Acalentava um sonho que a fazia amealhar os parcos tostões sobrantes do trabalho no escritório. Havia de ter o seu próprio negócio, coisinha pouca, para principiar. Uma espécie de capelista, nome que já quase só ela usava. Explicava que se tratava de uma loja pequenina, de vão-de-escada talvez, a vender umas revistas, uns macitos de tabaco, uns brinquedos de plástico, uns chupa-chupas e o mais que o espaço e a inspiração permitissem.
Fazia o seu dia a dia no escritório com boa disposição, risadinhas semi-fechadas, para não desfazer as comissuras do coração. Cabia-lhe, como principal função, abrir e fechar o correio. Muito metódica, obcecada por arrumações e simetrias, manejava com segurança e destreza facas abridoras de envelopes, agrafadores, desagrafadores, novelos de cordel encerado, tesouras, balanças sensíveis ao grama (dizia com ênfase “o” grama), tubos de cola de várias marcas e até, quando o progresso se fez notar, uma máquina de franquiar. Retirava os selos que chegavam das mais distantes paragens para engrossarem a colecção do patrão que por eles esperava, com impaciência. “Não demorra nada, senhorr doutorr”. Carregava nos “erres”, mas fazia questão de esclarecer não ter nada a ver com Setúbal. O Padrinho, senhor finíssimo e rico, que a criara com esmeros de bordados, piano e francês, falava assim. Não lhe herdara os bens (que Deus tivesse a sua alma em descanso), mas os “erres” e as boas maneiras.
Ao fim do dia, lavava escrupulosamente, com um papel embebido em álcool, o tampo da secretária e arrumava as ferramentas do ofício, em alinhamento de exército pronto para a batalha do dia seguinte. Transportava, num saco de napa castanha com fecho “éclair”, entre outros artigos de higiene (coisas íntimas, de senhoras), a escova de dentes, o copo de plástico e a pasta medicinal. Prezava a dentadura, muito certinha e ainda completa, e lavava-a após cada refeição, por muito ligeira que fosse, escovando-a em vários sentidos e direcções, um número exacto de vezes. As necessárias. “São as minhas pérrolas.”. E pestanejava, enlevada.
Falava, várias vezes por dia, do “marrido”. Apesar das circunstâncias bizarras, continuava a ser, para o bem e para o mal, na alegria e na tristeza, o seu esposo, o seu homem, o único que conhecera na vida e por quem se apaixonara na verdura da juventude de menina recatada. O Padrinho, (Deus lhe perdoe), não gostou do cavalheiro. Suspeitava que o bigodinho à cinéfilo, que lhe provocava sonhos eróticos, escondia interesse por dote que aconchegasse aquele pedaço ardente de castidade. Caturrices de velho, pensou. Pergintava-se como podia uma pessoa boa como o Padrinho ser levado a ter pensamentos tão horríveis sobre aquele Príncipe que, era bem de ver, além de bonito, tivera educação esmerada, rara mesmo nos tempos que correm.

continua...

Licínia Quitério

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