Coisas velhas, antigas, gastas, feridas pelo tempo, pela desatenção, preteridas pelas novas recém-chegadas, com outro brilho, outra utilidade, outros desenho e cor.
Nas mudanças
de casa, nas mudanças de gente, escaparam à devora de usurários e ao lugar dos
lixos. Foram-lhes concedidos sótãos esconsos, gavetas, arcas de memórias.
Quando chegaram até mim, procurei-lhes as feridas, tratei-as como pude, fui
espreitando as marcas que me contassem histórias de outro tempo, de outra
gente. Por vezes tive um certo pudor em as modificar, em lhes dar novos
casamentos, lugares impróprios para a função.
A máquina de
costura não devia ter ficado num corredor sem janelas, mas há tanto tempo que
ninguém cose nela.
A litografia
da menina com o crisântemo e a foto do antepassado trocaram de molduras, a dele
mais sóbria, de acordo com o olhar severo, a dela, dourada e romântica,
fica-lhe a matar.
A mesa de
cabeceira foi despromovida por falta de cabeceira, mas suporta um vaso com
planta viva, para lhe dar novo alento.
A cadeira,
coitada, já não oferecia segurança a quem nela se sentasse e tinha rugas,
manchas da provecta idade. Dei-lhe um banho de azul, rejuvenesceu, sustenta com
garbo antigas toalhas rendadas e um búzio que lhe dê um sopro de mar.
Pelas
gavetas foram encontradas frivolidades de pano e linha, lenços que enfeitaram
lapelas de damas e cavalheiros, luvas e golas de menina, roupinhas minúsculas
que sobraram de enxoval de criança, e mais e mais peças confeccionadas por mãos
de fada, rendeiras, bordadoras, trabalhos exímios de mãos de mulheres. Hoje
estão todas juntas num quadro com moldura de madeira em que fixei uma chapinha
de metal a dizer em letra cursiva “Modas e Bordados”.
São
tesouros, são bagatelas, são vida que gosto de contemplar, afagar, numa
linguagem entre tempos que só os velhos entendem.
Licínia Quitério
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