Acordo com um peso nos ombros. Somos um mundo feito de naufrágios, penso, agarrada às notícias desse mar do meio onde se sepultam os esfomeados. Penso sempre em Agostinho da Silva que alertou para a chegada dos do sul a desnortear a Europa. Entristeço ao saber este lugar de ricos a erguer vedações farpadas para que não entrem os que nada têm senão, ainda, o desejo de viver. Sabemos nós, o homem branco, que nada pode parar o grande êxodo? Todas as guerras que alimentámos, todos os bens que saqueámos, fazem-se agora aflição à nossa porta. Nós, os que tudo temos, trememos de um medo impensável dos que nada têm. Desesperamos e dizemos:
Esta não é a vossa casa. Ficai na vossa, continuai a morrer,
não ouseis viver na nossa. Se é difícil alimentar os pobres que na nossa casa
criámos, como deixar-vos entrar, deserdados da terra, apagadores dos nossos
sonhos de grandeza?
O peso nos meus ombros chamar-se-á remorso? Alguém mais o
sente?
Licínia Quitério
Foto da net: Le Radeau de la Méduse, de Gericault
Foto da net: Le Radeau de la Méduse, de Gericault
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