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24.8.09

A JANELA DA INFÂNCIA


Pela janela da infância o mundo entrava. O mundo, quero dizer, o canto estridente do canário da vizinha Celeste,com um carrapito preso por ganchos de tartaruga. O bater sola,cadenciado,do Júlio sapateiro, de beata apagada ao canto da boca. O chiar do rodado do carro de bois, pachorrentos como se usa dizer dos bois. Os gritos, sobretudo os gritos dos meninos da rua que brincavam e lutavam e se insultavam, a enganar a fome da côdea que tardava. E os gritos, os gritos das mães, a filarem-lhes as orelhas, Meu vadio, meu malandro, Ah nha mãe na me bata qu’eu na torno a fazer. O piar dos pardais, à boquinha da noite, disputando um abrigo nos braços enormes do velho plátano solitário. Noite feita, os morcegos rasando a janela da infância. Estranhos pássaros a chiar como ratos. E as corujas das torres a mandarem calar o murmúrio dos ares. Chiiu, chiiu, chiiu… E os pirilampos, na magia dormente das noites de Verão. Pequeninas estrelas ao alcance das pequeninas mãos.

Quando a janela da infância se fechava, começava o sono. E nele entrava o mundo, em nova ordem, bizarro e encantatório. Era então que o canário da vizinha Celeste,liberto da prisão, voava como um louco em redor da cabeça do Júlio sapateiro, a bater sola sem qualquer ruído, empoleirado no carro de bois que, vendo bem, nem era um carro, mas uma gaiola a abarrotar de pardais. E havia os gritos, os gritos das corujas das torres, procurando as orelhas dos meninos da rua. Depois, num clarão deslumbrante,as corujas, transformadas em pirilampos, pousavam, brandamente, no carrapito da vizinha Celeste.

Também os mundos se cansam.Talvez por isso, chegava o tempo em que tudo parava. E aquele mundo subia, subia, subia,deixando cá em baixo, ao rés do sono, a quietude, a grande paz, quem sabe o nada. Até que, despertado pelo sol madrugador, o canário da vizinha Celeste cantava de novo, em estridências de amarelo oiro, a pedir-me que abrisse, inda por mais um dia, a janela da infância por onde entrava o mundo.


Licínia Quitério-2002

6 comentários:

Benó disse...

Bonito conto a lembrar a infância na provincia de antigamente ou será de agora ainda? Talvez....
Gostei de te ler.
Um abraço.

o Reverso disse...

fechada a janela da infância não acaba o sonho...

Paulo disse...

«Também os mundos se cansam.»

Verdade...


Beijo

Rui Fernandes disse...

Daqui a uns anos nenhum adulto te entenderá e andarão todos à cata de saber com que software e em que versão criaste esses cenários. Bons vão os tempo em que as crianças pensavam que os ovos eram feitos nos supermercados.

Beijos / Bom (melhor) ano novo.

Maria Poesia disse...

Aceno às suas palavras com lágrimas de alegria, sonhando interpretei o seu texto, clamando a memória...

Um Ano de Encantos!

Lacrima D'Oro

Inês disse...

Que belo conto de infância, são os que mais gosto.
Gostei muito do blog.
Um abraço!
Inês.

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