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28.12.13

A CIDADE DE LUME



Era no Inverno que ela floria. No Inverno, quando o frio empurrava as mulheres  para dentro das casas, para dentro das vidas, a juntarem pedacinhos de lã, pedacinhos de lembranças. No tempo em que o vento se esgueirava pelas frinchas das portas, pelo buraco da chaminé, e a chuva alagava o pátio, alagava as meias dos caminhantes. No tempo em que a chama do candeeiro se apagava quando a porta do quintal se escancarava. O tempo das grandes noites, dos dias escuros e das frieiras a magoarem os dedos. Era esse o tempo em que a menina vivia de lume, vivia no lume, era o lume. No banquinho de madeira, esperava pelos carvões que haveriam de se deitar na braseira de cobre. Vermelhos os do centro, negros os que em redor se amontoavam, aguardando a sua vez de serem incêndio. Ali ficava a menina, o queixo nas mãozitas, os cotovelos nos joelhos, em encaixe perfeito,  equilíbrio e conforto. Era o seu tempo de florir, os olhitos presos no mundo ardente dos carvões.  Na cabecita nasciam histórias da cidade de lume, com as suas ruas povoadas de pequeninos seres de lume que se moviam atarefados, num sem-fim de subidas, descidas, avanços, recuos, como quem vive, mesmo sem lume. Ali ficava, presa nas histórias dos seus homenzinhos de lume, ou mulherzinhas, que eram iguais, de tanta luz, de tanto brilho. Quando os olhos se cansavam de serem  flores de lume, o brilho da cidade esmorecia, acalmava, abrandava, desmaiava, e os olhos fechavam-se, docemente, como se fecham as flores. Amanhã voltaria, o queixo nas mãozitas, os carvões acesos, os homenzinhos na cidade, numa azáfama, as histórias a começarem na cabecita da menina da cidade de lume. Era assim, no Inverno.

Licínia Quitério

foto da net

26.12.13

UM PEDAÇO DE MAR


Um pedaço de mar é o que nos fica no olhar, abandonada a praia, quando nos chama a terra firme, a alta montanha que nos promete o céu. Um pedaço de mar é o que trazemos no olhar, na viagem de regresso, sabida a montanha que não nos deu o céu. Um pedaço de mar viaja connosco, mesmo quando a viagem não é mais longa do que a praia.

Licínia Quitério

17.11.13

NEVE




Caiu neve na serra. É o que ela diz, acrescentando açúcar no café, com a lentidão da manhã enfiada nos dedos. Queria dizer mais coisas, outras coisas, mas a frase saiu com um ponto final e ele não é homem de continuar um texto, de o ajudar a não morrer assim, seco, impertinente. Tem o jornal para ler e, na sua importância de leitor, fecha-se ao mundo, fecha-se à voz dela, que outra atenção não merece, que ela costuma demorar-se em oratórias, enquanto bebe o café, enquanto toma duche, enquanto faz amor. São assim as mulheres, é o que ele afirma, passado o viço, passado o vício. Falam e só para elas falam, no desfiar de lamentos, de  toadas dos tempos de embalar, dos tempos de dançar, dos tempos do viço, do vício.
Se caiu neve na serra, se o filho não apareceu, se a outra não fala, só sorri, se o outro acrescenta frases às frases dela e sorri, se tudo há-de ter seu caminho e foz, é porque a hora virá de a neve derreter, de se querer lago e afogar.

Licínia Quitério

6.11.13

TEJO



Dos Pirinéus não se vê o Tejo. Digo eu que não subi ao alto mais alto dos altos montes. Tão pouco se vê quando tão baixo se vive. O mundo fica todo muito pequeno, inteirinho ao alcance da mão, do olhar. Dizem-me: os Pirinéus ficam ao fundo da rua, mas da minha mão ao fundo da rua é tão longe que eu fico a acreditar no que me dizem e não vou até lá ver os Pirinéus. Dizem-me: dos Pirinéus não se vê o Tejo e eu acredito. Acredito porque nunca subi ao monte mais alto entre os mais altos donde provavelmente se vê o Tejo. Nem sequer irei ao fundo da rua olhar os Pirinéus que, acredito, lá estão esperando por mim, sabendo que não irei. Bem melhor é ficar aqui, no nascer da rua, a ver a chuva cair e um rio a crescer, envergonhado, com vontade, esse sim, de chegar ao fundo da rua e dizer aos Pirinéus que lá do alto mais alto poderão avistar um riozinho seu irmão, a correr à procura de um país onde lhe chamem Tejo. Os Pirinéus vão acreditar no riozinho nascido na minha rua porque pensarão que ele sou eu nos meus tempos líquidos de correr montes e vales e me deitar no Tejo como em cama de nuvens de cidade muito amada. Dela me lembro agora, no meu tempo opaco de ficar e de olhar e de dizer Tejo como quem diz Vida. 

Licínia Quitério

3.11.13

IR E VOLTAR



   A gente às vezes vai e procura e encontra ou encontra o que não procurou ou desiste de procurar, tudo sempre sem saber porque procura. Andamos mundos, conhecemos gente, esperamos sempre mais, mais respostas, mais um passo, mais um minúsculo passo que nos ponha defronte da montanha mais alta, do pico mais aguçado, do ar mais rarefeito, da respiração da criança no sono, do claro-escuro da matinée de outrora, do silêncio branco da partida. 
   A gente às vezes volta, acrescentada de perguntas, de gente, de caminhos antiquíssimos, de coisas feitas, já rotas, já desfeitas, e de outras a nascer, que saberão dizer que ali nos viram, caminhando nas sombras de um sol a pique, com o espanto a crescer por ali estarmos, defronte dos montes, nomeando o pico mais alto dos picos que nunca subiremos.

Licínia Quitério

23.10.13

APARIÇÕES





    A ler um artigo de Alexandra Lucas Coelho, no Público, e a sua descrição de um tal teatrinho perdido no caminho para Death Valley, em cenários que atravessam a nossa memória de filmes de Antonioni, a ler este excelente artigo, dizia, e o pensamento a fugir-me para outro cenário retro em que entrei recentemente. 
    A propósito de colher um papelinho a que se chama vulgarmente atestado médico, acompanhei uma amiga a um prédio bonitinho, fim de século dezanove, rés-do-chão e primeiro andar, porta verde só encostada, dois degraus de pedra bem gasta. Empurra-se a porta e ficamos numa salinha chamada de espera, com um terno de sofás de madeira e napa, uma mesinha para revistas, tudo muito retro de baixo preço. Nas paredes, quadros com fotos da vila, num tom geral azulado que o tempo lhes conferiu. Um deles, tendo como moldura uma fita adesiva verde escura,  pendente do prego na parede por um cordão sedoso, não consegue horizontalidade e espera um ligeiro toque que o endireite. Na mesa, o Borda d' Água, o jornal da região, umas revistas de um laboratório de análises, um lápis e um bloco de apontamentos por estrear. Ninguém na sala, até que, num arrastar de pantufas pelo corredor, chega uma velha senhora que diz "o senhor doutor já vem". Informação dada, senta-se e  começa, em silêncio, a fazer o naperon de crochet que tira do bolso do avental. Esperamos uns longos minutos até que o senhor doutor aparece, diz "boa-tarde, venha",  e volta para o interior da casa, enquanto a senhora de crochet e pantufas ordena "ainda temos de ir a casa da tia Mila". O senhor doutor responde um "sim, mãe" e ainda o oiço dizer para a minha amiga "venha buscar para a semana". 
    Apenas dois degraus e o filme desenrola-se e rebobina-se, oitenta anos para trás, oitenta anos para a frente. Em Death Valley ou em Aboboreira do Mar, as aparições do passado não param de nos surpreender.

Licínia Quitério

14.9.13

SETEMBRO



O meu plátano não falha no seu cuidado de me anunciar o Outono. Todos os anos manda as primeiras folhas perdidas roçarem a minha porta, num vozear vegetal, feito de estalidos e sussurros arrastados. Foi assim hoje. Reconheci o toque, abri a porta e recolhi a folha maior, enorme, lindíssima no seu ainda verde mesclado de anúncios de dourado. Vai ser guardada até para o ano, se eu e o plátano mantivermos a nossa relação.


Licínia Quitério



31.8.13

DONA CUSTÓDIA

   

   Na loja da dona Custódia havia tudo, cabia tudo, nada se limpava, nada se fiava, nada tinha peso certo, nada tinha preço certo. A montra da loja da dona Custódia era um amontoado de objectos, grandes, pequenos, médios, de caixas, mais ou menos amolgadas, de moscas mortas de tédio, lá pelo meio. A loja onde reinava, absoluta, a dona Custódia, era um armazém de objectos, de sacos, de sacas, de tulhas. No balcão que sobrava dos objectos, dos sacos, das caixas, dos papéis, cabiam a balança e a os braços da dona Custódia que se adiantavam até às mãos dos fregueses a quem pedia que mostrassem o dinheirinho que traziam, antes de aviar a encomendinha. Falava por diminutivos, com ternurinhas de beata, o dinheirinho, a moedinha, meu menino, minha menina, pede mais dinheiro ao paizinho, diz à mãezinha que a Custódia não tem, valha-te nossa senhora, quem não tem dinheirinho não tem vícios. Era assim. Toda a gente ia à loja da dona Custódia, porque lá havia de tudo, de tudo o que mais ninguém tinha, de tudo o que já ninguém supunha que havia. A ratoeira para os malandros dos ratos, o petróleo para o candeeiro, o vidro para o candeeiro que  pum! estalara, o candeeiro, a torcida para embeber no petróleo do candeeiro, o bocal para o candeeiro que o outro estava todo retorcido, os fósforos para dar à luz. Na dona Custódia havia tudo. Muitas vezes, a dona Custódia demorava a fazer o avio, porque não era fácil sacar um vidro de candeeiro que morava na prateleira mais alta, à esquerda de quem entra, mesmo por detrás dos atados de chinelos, e das fitas peganhentas para apanhar moscas. Valha-te deus, menino, que trabalhos estás a dar à Custódia. A dona Custódia roubava no peso, no preço, na qualidade. Toda a gente sabia e gostava. Era assim. Ela tinha tudo o que fazia falta. Menos bondade, lá isso, mas uma pessoa com tanto dinheiro e um marido cobardolas em quem mandar não podia dar-se ao luxo de virtudes para além das que a santa madre igreja ordenava e de cuja falta sempre absolvia, mais padre-nosso, mais dízima à paróquia, mais mordomia pelas festas grandes. Era assim no tempo antigo do fado antigo da dona Custódia de carrapito e óculos de aros negros, redondos, de mãos estendidas para os dinheirinhos dos meninos.


Licínia Quitério
   

29.8.13

OS ANOS


   
Morreu, o cão. Nos seus anos de ser cão, quase duas décadas deviam ter passado. Agora a dona não traz as duas voltas da trela acrescentadas às pulseiras várias e coloridas. Tem mais simetria no andar, mais disponibilidade do braço para ajeitar com elegância o chapéu que faz mudar com as estações do ano. Os olhos, escandalosamente azuis, não dizem dos seus anos de dona. Na falta do velho cão que lhe alentava o passo, adianta-se ainda mais ao dono que envelhece largamente nos seus anos de dono e que tem um braço para a bengala e o outro para os grandes sacos que a dona faz questão de encher de belezas e saudades. Não se consegue saber a que filme pertencem, a que livro, a que quadro, a que história que nos tenham contado. Devem ter-se amado loucamente, saltado barreiras, regressado a conveniências, a velhas caixas. Chegou o tempo, este, de se detestarem. Daí a aspereza com que ela lhe fala, ao sacudir, com as costas das mãos de veias azuis e verniz escarlate, as migalhas de bolo que ele sempre deixa cair na aba do colete de teen-ager. Os olhos dele estão cada dia mais pequenos, mais baços. Tenta acompanhar o andar apressado da sua Miss Daisy mas é obrigado a parar, por momentos, o fôlego a quebrar, a raiva a crescer, a mão na haste da bengala, num simulacro de golpe de Zorro na colecção de cromos, escondida no forro da gaveta da mesa de cabeceira. À vista do fim, o amor torna-se insuportável, sufocante, e vira do avesso onde se lê 
o ódio. Um deles irá à frente, naturalmente, terminada a contagem dos seus dias de gente. O outro chorará, sinceramente, o amor perdido, o tempo perdido, o cão tão bom amigo de homens e mulheres que outras histórias não gostam de contar.

Licínia Quitério

25.8.13

NPV












"Há as couves de pé alto,  há as couves galegas, as portuguesas, as que têm coração de boi,  as mais ou menos farfalhudas, as enfezadas, as que é um gosto vê-las, as frisadas, as pencas, as despencadas, as de bruxelas, as de mais perto, as que nunca passam de repolhos, as chinesas e amarelentas, as couves-propriamente-ditas, as tronchudas, as de trepar até ao primeiro andar, as rasteirinhas, as que pegam de estaca.
Estas, no retrato, são as minhas couves do pé da porta. São as melhores, as mais saborosas, as mais vistosas, as mais simpáticas, as verdadeiras-couves-como-já-não-se-fabricam.
A minha equipa cuidará das couves deste quintal como jamais alguém o fez. Projectará a sua qualidade e beleza ímpares muito para além das fronteiras do meu quintal. Daremos continuidade às boas regas, às boas podas, às boas práticas. À frente da equipa está gente que nunca tocou num adubo químico, que nunca vendeu couve por coelho, que é devotada à causa do quintal como à da sua família.

O nosso slogan: ASSIM SE COMEM AS COUVES.

Vote em nós.

DONA TELA"

Excerto do jornal de campanha do NPV- Novo Partido Vegetal


21.8.13

AS PAREDES AZUIS



   


   Na época, usava-se pintar as paredes de cores fortes. Ele mandou pintar a sala de azul, azulão de mar aberto. Comprou sofás de napa vermelha, móveis em módulos ajustáveis, de linhas rectas. A kitchnette simpática, funcional. Ligou a aparelhagem e ouviu-se música francesa. Na relação com a Conceição, que Nanette se chamava, viera-lhe o interesse pela França. A música, os livros, até a comida. Aprendera a fazer omeletas que, explicava, tinham de ser “baveuses” no interior. Joana olhava em redor da sala, estranhando as cores, os sons, um tremor desusado nas ancas, uma súbita vontade de não estar ou de ficar para sempre. Léo vociferava “je pisse, j’éjacule”. Ele preparava dois uísques. Puro para ele, com soda para ela. Estava calor, o calor das noites belas e ardentes da cidade, nos seus abismos e clausuras. Transpiravam trinta anos de vida, de espanto ainda. Transgrediam, tremiam, mas não se detinham. Dançavam e bebiam e bebiam e dançavam. “Je t’aime moi non plus”, susurrava Jane Birkin. Bem se podia dizer que choravam, tremendo nas cordas finas da ternura. Sabiam da noite única impressa nas paredes azuis, no sofá vermelho, no ligar e desligar do pequeno frigorífico, no chiar do elevador, no tilintar do gelo nos copos.
   No dia seguinte, ele foi buscá-la ao emprego, para almoçarem. Tirou do bolso um gancho de cabelo e disse: deixaste-o no sofá, tens de ter mais cuidado. Sentiu a censura, cortante, a boca fina no beijo rápido, a compressão dos malares.
   Mesmo depois de cortar o cabelo bem curtinho, não voltou à sala com paredes azuis. Houve outras salas, até deixar de haver. Entretanto, a transgressão encorpava nas veias da cidade.


Licínia Quitério

20.8.13

O CAFÉ


   Paguei. Recebi o troco. Tudo certinho. De momento sem mais clientes, o rapaz dedicou-se ao sector financeiro. Uma nota que, presumo, fosse aquela com que lhe paguei, foi enfiada no bolso. A caixa da registadora, que não funciona, foi aberta, com uma leve pressão dos dedos. Dela retirou umas moedas que transferiu para uma caixinha verde, noutra bancada. Acabei de assistir a uma operação corrente. Um investimento em bolsa e o remanescente em off-shore. Encerrada a operação, voltou para o balcão e olhou-me, tranquilo. Percebi que quem me tinha servido o café era o ministro das finanças.

Licínia Quitério 

14.8.13

A VIAGEM



  Há quanto tempo morrera o que chamara A Viagem? Sabia exactamente o dia, a hora. Quatro da tarde, o sol perigoso, o abrigo do guarda-sol de riscas rosa e laranja. A mão na testa suada dele, em toque leve, hesitante. Vamos então? Posso marcar com a agência? Sentiu-lhe o estremecimento. Total, da raíz à copa. Disse não, já marquei. Levantou-se, pegou na toalha, nervoso. Sabes com quem vou. E, quase num grito, é melhor acabarmos com isto de vez. Foi no dia de Verão em que a noite se fez mais cedo, mais escura.
  Olhou o relógio. Eram duas da tarde naquela terra em que o sol chegava uma hora antes. À mesa do almoço, incluído no pacote A Viagem, com mulheres que umas às outras se acompanhavam. As pernas pesadas, cruzadas com esforço. A Viagem estava a ser dura e o calor mordia-lhe as pernas dantes tão bonitas, a soltarem assobios nos olhos dos homens. Fitava a das argolas faiscantes, poderosa ainda. Se fosse como ela, quem sabe pensaria em, como se diz, refazer a vida, desfazer os anos, inaugurar, porque não, uma nova paixão. Foi um relâmpago de desvario que lhe trouxe os olhos azuis, magníficos, estuporados, de Donald Sutherland, no rosto fechado do jovem empregado que lhe atirava vous voulez quoi, Madame? A carne. Estava mal passada, rosada no interior que ela exibia, de garfo e faca assestados na ferida. A Viagem é também aquilo. Decidir, exigir, protestar, silabar Ca-pa-dó-ci-a quando dizem Palma de Maiorca, calar-se quando se erguem os Himalaias na voz maiúscula do Homem-que-já-deu-duas-voltas-ao-mundo.
  Tanto cansaço, tantas horas, tão longe o chapéu de sol às riscas, tão sem sabor A Viagem finalmente ressuscitada, tão diferente da outra, tão mal passada a carne.


Licínia Quitério

11.8.13

A MESA DA MÁQUINA



  A Avó era pequenina, redondinha, airosa ainda no seu traje de viúva. Costurava os seus trapinhos numa máquina de manivela, sem pedal, que assentava numa mesinha de madeira, com um muro baixinho à volta do tampo, não fosse a máquina-só-tronco estremecer e sair mesa fora. A Avó sentava-se numa cadeira que dizia austríaca, de madeira preta, torneada, de assento de palhinha, a que mandara cortar uns bons centímetros de pernas, à medida da altura da Avó, da altura da mesa da máquina.
  A máquina foi-se embora, a Avó também e mais a cadeira. Por artes de partilhas e repartilhas, sem eu dar bem conta, a mesa da máquina-só-tronco veio habitar o meu sótão das coisas sobrantes de vidas encerradas. Por capricho de recolectora de memórias em que me tornei, a mesa, já sem murete, pintada de vermelho, com tampo revestido de linóleo também sobrante de outro tempo, com sua gaveta de fechadura de chave perdida, instalou-se na minha cozinha, em parelha com banco de buraquinho no assento. A máquina deu lugar aos meus vasos de orquídeas, flores desconhecidas no tempo da Avó pequenina, que dava à manivela da máquina, no acerto e transformação de seus bem amados trapinhos.


Licínia Quitério



3.8.13

PELAGENS




   Tomara acabem as férias dele. Para eu ter as minhas. Homens em casa, sabe como é. Isto diz a dona da pelagem loira coberta de uma pasta esbranquiçada que a havia de tornar de um loiro mais aberto, segundo ela declarara à menina cabeleireira. Mal acabara de falar, cala-te boca. O cão ladrou e o dono disse entre portas fica aí. E bico calado. Ficou, a trela amarrada a uma das grades do alpendre, a pelagem cor de café com leite recentemente tosquiada, hirsuta e abundante apenas nas orelhas e na cauda. A t-shirt de manga à cava e os calções deixam escancaradas grandes porções dos membros superiores e inferiores, do peito e das costas, forrados todos de uma pelagem negra, longa e espessa. O fio de ouro, grosso, de malha batida, com crucifixo, brilha pelo meio daquela selva. Uma tentação para a ladroagem. Bem lhe dizia, mas ele ai do filho da mãe que se atreva. Leva que contar. Exemplificava, a mão em cutelo, uma perna atrás, os joelhos flectidos, num arremedo de artes de defesa com nomes impronunciáveis. Um homem pronto para ir à praia, com as suas havaianas verdes, a dar com a t-shirt, essa de um tom mais discreto. Faz rodar, no pulso direito, uma fitinha cor de laranja que diz Porto Galinhas. Este ano, conta ela, compondo o botão que se desabotoara mesmo no meio do peito, ficaram pela Tunísia. Gostaram. A comida é que tinha sido um problema, especialmente para ele que só gosta dos cozinhados dela. O hotel, isso sim, uma lindeza. Até pétalas de flores lhes punham em cima da coberta da cama. Quem não gosta de um luxozinho de vez em quando, replicava a menina cabeleireira, com olhos de telenovela. Ela ajeita na cadeira os quilos a mais, pega no leque e abana-se, com expressão de fastio. Ah o Verão, o Verão. Não veste bata de dona de casa, mas é como se vestisse. Talvez sugestão do padrão do tecido da blusa, miudinho, em fundo escuro, para não se notar tanto a sujidade. A expressão, o gesto, esses são de professora primária, do tempo em que assim se chamavam e a escola assim era. Ele aproxima-se dela, o cão fora do alpendre a pedir festas, a companhia da dona, o rosto perto do dela, a fala num segredo, quase a roçar a pasta de tinta esbranquiçada rente à orelha. Por detrás dos óculos, tem o olhar assustado dos míopes. A careca não condiz com o traje decidido a grandes ares, grandes mares. Ela não deixa que a lamba, concede uma festa ao cão, na área tosquiada, distraidamente, da testa à nuca. Senta-te ali. Aqui fazes-me ainda mais calor. No alpendre há um latido frouxo. Ele vai escorregando pelo braço da cadeira em que se apoiou, escorregando, sentando-se, enroscando-se. Ela grita deixa-te de graças. O latido do cão no alpendre cada vez mais frouxo, mais espaçado.

   No 112 não pode ir o cão, o da pelagem cor de café com leite. Diz a lei.


Licínia Quitério

30.7.13

A CASINHA DA EIRA



  Quando nos recebem numa casa assim, A Casinha da Eira, feita e mantida por várias gerações de obreiros incansáveis, preservada com esforço e carinho, no respeito pelos objectos que atestam usos e trabalhos, renovada no serviço de refeições frugais, de conversas amenas, de risos de crianças, quando entramos numa casa assim, dizia, é como entrar num verso em que todas as palavras encontraram o seu lugar, sem artifícios nem desperdícios, isto é, as palavras imprescindíveis para vogar na suprema arte de ser simples.


Licínia Quitério 

10.7.13

A ORQUÍDEA


Há a orquídea acesa na janela, há um novíssimo, secreto, indecifrável dia, aceso na janela, em redor da orquídea.


Licínia Quitério


2.7.13

A ESCADA


O meu pátio vale um poema. Tem uma escada que leva ao céu.

Licínia Quitério

26.6.13

AS COISAS


  Quando eu era nova, não comprava flores. Ofereciam-mas, em corte, em vaso, para a jarra, para o quintal. E eu também as oferecia, ou roubava um tronquinho, como ainda faço. Levei muito tempo a convencer-me a comprar plantas, flores. Ainda hoje raramente o faço. Quando eu era nova, não comprava gatos, nem cães, nem pássaros, nem peixes, nem cágados. Davam-mos ou vinham ter comigo. Até hoje, apenas comprei peixinhos vermelhos para deitar em lagos. Quando eu era nova, não comprava salsa, nem coentros, nem hortelã, nem louro. Davam-me ou ia eu colher. Tenho sorte, ainda hoje me dão, para semear, para plantar, para usar. Quando eu era nova, não comprava amoras. Colhia-as, picava-me, e, sem sequer lhes soprar o pó do caminho, comia-as. Hoje não as compro, mas raramente as colho. Ficou-me o valor das coisas, o amor das coisas que me deram, que dei, que plantei, que colhi, que me acompanharam, sem nada para a troca a não ser a promessa de ficarem na memória dos meus sentidos. Coisas de velha.

Licínia Quitério

22.5.13

A MASTABA



Não se pode ficar indiferente a esta mastaba barroca com o seu peso descomunal, distante a pedra das gentes, muda, hierática, construída a ouro e sangue, testemunha de vãs glórias, nascida de promessa, de compromisso, de intrigas de nobres e frades, morada episódica de reis, albergue de monges, de soldados, de paisanos, de prisioneiros, de belíssimas peças de arte, viveiro de lendas mais ou menos macabras, poderosa, fria, mais fria ainda nas noites frias, desertas, estranhamente belas e pálidas.

Licínia Quitério

1.5.13

OLAIA



Não hesitou no seu labor de florir em tempo certo. Indiferente à sujidade, aos despojos de vidas mal contidas, às sobras das infindáveis obras que os homens sempre encetam, sem irmãs que a confortem, a olaia vive e abre múltiplos sorrisos coloridos, na esperança de uns olhos que nela se revejam, pensando em tempos idos, de muitas árvores,  de outras ruas, de outra pressa de chegar, os olhos sendo os outros e os mesmos.

Licínia Quitério

29.4.13

CRISE



Um corpo assim complexo
só pode ser um desafio 
à eternidade e afinal 
uma pequena oscilação, 
um ínfimo deslize, 
uma desatenção 
podem ser a explosão,
o fim da crise

Licínia Quitério


24.4.13

NÃO FORA ABRIL



Mal nos conhecíamos. Só tínhamos aquele conhecer por outras bocas, aquele saber de morar no mesmo sítio sem nos cruzarmos, aquele nada que sendo essência se fazia distância. Poderíamos ter vivido e morrido sem nada mais termos um do outro, um para o outro, sem nada mais que nos sabermos do mesmo lado, como tantos outros que entre nós e de nós falavam. Teria sido assim, sem mais notícia, sem mais prazer, sem mais pesar. Não fora Abril e não nos teríamos encontrado, de súbito, nos lugares mais claros que alguma vez teríamos sonhado, nós que vivíamos a sonhar com o fim da escuridão. Não precisámos que nos explicassem porque estávamos ali, naqueles dias, olhando-nos como se sempre nos tivéssemos olhado, olhando-nos com o falar ansioso da longa espera, sabendo exactamente o que nos cabia fazer. E foi tanto o que fizemos que nunca pudemos parar de nos olhar falando, na alegria e na tristeza, como se diz de quem se ama. Não fora Abril e eu não saberia.


Licínia Quitério

18.4.13

LUA NOVA


Lua que não se mostra
não ilumina
não entontece 

não anima 
não engravida
não enlouquece
não bate à janela
não chama lobo
não despe mulher.
Lua de maré-baixa
de cabeleira curta
de erva rasteira
de noite escura
de descaminho
de perdição.
Lua Nova
não nascida
ausente.
Promessa silenciosa de crescente.
Decrescente.

Licínia Quitério

17.4.13

O PRIMEIRO RELÓGIO




Já era crescidinha, já, quando mo deram, embora tivesse ainda uma grande curiosidade de criança. Foi por isso que depressa se avariou. Não parava de o abrir, de o mirar e de, pior ainda, lhe tocar as minúsculas peças que me fascinavam no seu vai-vem-tic-tac-tic-tac. As rodinhas, as pedrinhas vermelhas, a seta e, enroladinho, fininho, o que eu sabia chamar-se " o cabelo". Muitos minutos, talvez horas, de puro enlevo, abre, fecha, dá corda, acerta, escuta. Um dia, o cabelo desenrolou-se, com um quase inaudível clic e a minha aflição cresceu, cresceu. Encobri o crime, disse apenas "o relógio não trabalha", o meu Pai abriu-o e ralhou, oh se ralhou, que mania a minha de mexer onde não devia, que não ganhava juízo, por isso o relógio não tinha vindo há mais tempo. Acho que chorei, de vergonha mais que de arrependimento. Voltei a abri-lo, muitas vezes, a  tentar entender aquele mecanismo de peças tão diligentes nas suas infalíveis voltas e voltinhas, para trás, para a frente, tic-tac tic-tac. Foi guardado, conservado em vitrine, no seu tempo de reforma, há muitos, muitos anos, milhões de milhões de horas depois do seu tic-tac ter emudecido para sempre. Conservada também a minha curiosidade por saber como são as coisas por dentro, como funcionam, como pensam, se pensam. Por vezes, ainda avario um ou outro mecanismo que me cai nas mãos. Sinto sempre alguma vergonha, mesmo sabendo que ninguém me vai ralhar, mas arrependimento nunca. São crimes tão saborosos.

Licínia Quitério

11.4.13

LÍQUIDO




Assim chorosa, assim pingada, a gente passa, a vida vai, a vida fica, e eu a ver, sem perceber, que tempo faz, que hora é, há um desacerto, há um engano, há um enredo, há uma aflição, e a gente passa, e eu a ver, e a chuva cai, uma balada, uma toada, uma batida, rente à janela um coração.

Licínia Quitério

9.4.13

PAN



Ouvi o silvo tentador, ao longe, depois mais perto, mais perto. Um assobio, uma chamada, uma música de sílabas poucas. Pensei nos seus pés de cabra, no seu erguer de bicho-homem, poderoso, ameaçador e triste, tão triste. De que fogem as ninfas neste bosque sombrio, gotejante, com odores do princípio dos mundos? Do bicho-homem que as seduz, forte e hirsuto, débil como um canavial de outono, chamando um amor perdido com a flauta em que transformou a fala, essa rouca e agreste, desamparada e inútil.
Acordei tarde, ao som do amola-tesouras que passou na rua, procurando sustento, prolongando as chuvas. 

Licínia Quitério

7.4.13

REGRESSOS



A hora dos regressos, costumava ele dizer. Tudo se cansa, tudo arde, tudo se decompõe, tudo desiste, tudo deixa de ser. Até aquele jeito de ele falar dos regressos como se esperasse ainda que, para lá da chaminé, do telhado, da rua, de todas as ruas e todas as serras que sempre moram para lá das ruas, ela iniciasse o seu caminho de volta. Até deixar de ser, contava as gaivotas, ou as andorinhas, ou os tordos, ou os estorninhos, ou os pardais quando, esses sim, regressavam da sua faina de voar. Depois, os olhos caiam-lhe mais para longe, mais longe do que a serra que nem sequer sabia se lá morava, e ficava no seu jeito de esperar, um jeito assim amolecido e turvo, de ombro descaído, de pálpebra frouxa, de sussurro que só ele ouvia, que só ela ouviria na hora de voltar, para cá da serra, para cá da rua, para cá da chaminé da casa onde ele contava as aves, na hora dos regressos, como sempre dizia.

Licínia Quitério 

4.4.13

O GELO



Dobro-me, enovelo-me, reduzo-me, enquisto-me. Só eu resto da alvura dos lençóis, dos dourados da festa, do tumulto, do ardor, do suor, do amor. Só eu, o meu manto de pele, este travo de fel. O gelo.

Licínia Quitério

30.3.13

TANTAS PEDRAS



Tantas pedras. Tantas casas, tantas coisas, tantas causas, tanto céu, tanta terra, tanta serra, tanta água, tanta mágoa, tanta gente. Tantos olhos que me olharam, tantas as mãos que me acharam, tantas as que me perderam. Eu fico, eu volto, eu recordo, desfio as contas e os contos que de contar não cansei. Tanta légua por andar, tanta légua já andada, e as pedras no meu caminho, e o céu no peito a crescer, e os meus braços alongados, tão cansados de voar, com duas asas de pedra, com duas ondas de mar.

Licínia Quitério

MARÇO



Março, marçagão, manhã de inverno, tarde de verão. Assim se fez o ditado, assim se fez o desejo. Assim não tem sido este Março de maus humores, de carão fechado, de humidades que escorrem e pingam nos nossos quartos interiores, nos nossos pátios que para a luz se construiram. Março velho, mês cansado de sustos e discursos sibilinos, atormentando os ares, sufocando a beleza a que temos direito. Limito-me a olhar através dos vidros embaciados da janela fechada onde espreitam jardins que inventei e que demoram a cumprir-se.

Licínia Quitério


21.3.13

UMA AVENTURA



Era inverno e eu perdia-me no jardim-floresta com as miúdas. Levava-as (levavam-me?) a uma aventura, daquelas dos livros que eu lhes comprava. Nesse tempo, a manta morta entre as árvores era o país dos duendes, verdinhos, de grandes gorros e orelhas que neles não cabiam. Tínhamos cuidados para não os pisar. As miúdas levantavam os pezitos e às vezes estatelavam-se e magoavam os joelhos. Nada de importante, nada de choros. Uma aventura é uma aventura e se uma silva nos arranha as pernas é para depois escrevermos uma história emocionante. Bonito, bonito, e as miúdas não esquecem, e eu não esqueço, foi quando ouvimos a conversa das árvores. Com os ouvidos encostados ao grande tronco, podíamos distinguir os gritos, os rugidos das seivas, das cascas. Com a força do vento da véspera, uma árvore mais débil tombara e apoiara-se na outra, velha e forte. Os olhitos das miúdas aumentavam de tamanho, de brilho e de algum susto. Fi-las olhar para cima, lá muito em cima, onde as ramadas de ambas as árvores se tocavam, se entrelaçavam, se soltavam, numa briga que o vento alimentava. Eram as falas das árvores zangadas que os nossos ouvidos escutavam, maravilhados. Depressa começámos a traduzir as falas vegetais, os suspiros, os ais, o ranger de cordas, tronco acima, tronco abaixo. Nunca mais ouvi uma discussão assim. As miúdas também não. Mas ainda hoje falamos da aventura das árvores que falam. 

Licínia Quitério

1.3.13

O JANTAR



Não se lembra do gosto da carne, nem consegue enumerar os acompanhamentos. Gostou, sim. Durou horas, o jantar, como sempre acontecia nos dias que reservavam um para o outro e que eram muitos, agora que os outros cada vez menos precisavam deles, arrumados que estavam vários destinos. Agora que tudo se fazia mais suave, menos vermelho ou negro, mais um tom indefinido, um mate de chá ou de seda verdadeira. Sabia lá ela dizer a cor da toalha,  se a havia, ou tão só uns papéis coloridos sob os pratos. Sabia-lhe as mãos, tão bonitas as mãos, naquele entrelaçar e soltar de dedos, num pontuar nervoso das frases que ela ia deixando no ar, dançantes, cantantes. Sabia-lhe os olhos, tão bonitos os olhos, tão tristes, tão movediços, tão procurantes, por dentro, por dentro. Lembra-se, isso sim, do vinho, do copo de pé, da minúcia com que ele o olhava, o cheirava, o provava, devagar, um pequenino golo, a ponta da língua a aflorar o palato e os olhos movediços, muito antes de dizer: gosto, prova e diz-me. E ela apressada, sem jeito, a provar e já pronta para lhe fixar os olhos e dizer: gosto.  O leve encolher dos ombros dele, meio amuado, a perdoar-lhe a mentira. Gostava dele, não do vinho, e ele que fazia tudo para lhe oferecer outros gostos, outros saberes, outros ouros, outras flores.  Disso tudo se lembra hoje, mas não sabe, na verdade, se era peixe ou carne o que comeram, antes do vinho cor de amoras maduras que lhe tingiu por instantes a boca, tão bonita a boca.

Licínia Quitério

8.2.13

POMBOS



Os plátanos dormem o seu tempo de braços nus. O vento sopra pelas esquinas e traz recados de um mar revolto. Na praça, o sol, a caminho do poente, ilumina as fachadas. Os pombos esvoaçam,  poisam nos troncos da cor do inverno e fazem corpo com eles, imóveis, por instantes a iludirem-nos o olhar. 

Licínia Quitério

1.2.13

CIRCE


Tinha uma camisola cinzenta. É tudo o que sei da senhora que fazia crochet durante a viagem de metro. Sei das mãos dela segurando o círculo de lã que ia crescendo, em volta, em volta. De vez em quando as mãos paravam de tecer e os dedos contavam pontos, contavam. E a rodela de várias cores continuava a crescer, a crescer, em volta, em volta. A camisola cinzenta era um pano de fundo da peça que volteava, volteava. Houve um momento em que as mãos pararam, a rodela parou de voltear. Foi um momento breve, mais breve do que a paragem do comboio na estação. Depois, num arranque brusco da mão, a senhora puxou o fio, puxou, desfez, desfez, voltas e voltas a desmanchar, a desmanchar, à roda, à roda, no sentido inverso do fazer, do fazer. A rodela a minguar, a minguar, o comboio a andar, a andar, a camisola cinzenta como pano de fundo, enquanto Ulisses nos braços sedosos de Circe.

Licínia Quitério 

15.1.13

A SEDE




Traz-me notícias ou um copo de água fresca. Tenho sede. Uma grande sede que não me larga a boca, as mãos, a blusa. Perdi a memória dos líquidos sobre a pele, sobre o chão em redor dos pés. Fresca era a alegria da manhã, a mansidão da noite. Como dizer-te que a chaminé já não tem fumo no inverno, nem pássaros na primavera? O céu é o mesmo retalho agarrado aos muros do quintal, mas, pouco a pouco, tudo vai tendo a mesma cor e há dias em que as nuvens pardacentas se prendem nos meus cabelos. Se me trouxeres um copo de água fresca, ou notícias, ou o que tu quiseres que me mate a sede, talvez o céu volte a ser azul e os pássaros poisem na chaminé. Depois do fumo, morta a cinza.


Licínia Quitério

 

2.1.13

BECOS



Há becos estreitos, escusos, escuros, envelhecidos, por onde entram e saem as cidades. Este fica em terra fria de gente fria, junto a praça que comemora dias sangrentos. Ao turista vendem-se fantasmas, objectos de tortura, algum bloody mary. Nada que me seduza especialmente ou me amedronte, ou me faça rir. Um beco é uma passagem entre a rua e a rua, às vezes entre o sol e a sombra. Também na minha terra os há, que ficaram das traças primitivas, ainda longe do deserto basáltico, da higienização dos costumes, do agora tem que se poupar na iluminação. O beco das curvas é o mais castiço, assim chamado obviamente pela sua serpente entre muros, uns cheiros de glicínia lá no alto, um cheiro a urinol cá mais abaixo. Passo por lá de tempos a tempos, só por passar, para ver se algo mudou, se ainda é atalho de bêbados que com ele conciliam as curvas do andar. Os becos são caminhos de resistência, de modéstia, de clandestinidade. Tudo isto a propósito do beco que vem na foto que nada tem a ver com os da minha terra, mais ao sol, mais ao sul, mais de gente pacata de raro sangue, e agora com um medo transparente no olhar, não me tirem a rua, não, ao menos não me tirem o beco. Gente boquiaberta com o deserto de basalto impoluto, entre a conformação e a saudade, num desatino quando a luz dos candeeiros esmorece, pouco dada a contestações, a exigências, na altura logo se vê, são todos iguais, entre mortos e feridos. Gente de provérbios e frases feitas que fazê-las dá cansaço, gente que ainda não viu bem o beco sem saída em que a meteram, por agora.

Licínia Quitério

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