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30.11.11

AS FOLHAS



Ouvi-as descer a rua, em obediência a um vento leve que anuncia dezembro. Um fervilhar sobre o asfalto, um arrastar de papel amarrotado, um quase impercetível silvo de réptil muito antigo. O meu plátano despe-se, reduz-se, enquista os sonhos de verão na mornidão das seivas e manda-me os recados anuais, nas folhas que roçam as sombras da minha porta. Abro e dou-lhes guarida na cesta do costume, onde se aprestam madeiras e pinhas para o fogo que virá, ainda que há muito extinto. Sairão as do ano passado, enrugadas, descoloridas, cansadas. Fico eu e as madeiras e as pinhas e as folhas novas e a lembrança das folhas velhas e a espera das outras a que hei de chamar novas, na voz redonda com que digo o tempo.


Licínia Quitério

29.11.11

LUGARES



Há lugares assim, onde a mansidão nos toca, por instantes, e nos dá a perceber a perfeição do universo, esse universo que vive na célula mais vibrátil do nosso corpo e na estrela mais brilhante da galáxia mais distante, que só em sonhos contemplamos.

Licínia Quitério

26.11.11

NOITE



Noite escura, em pélagos inconcebidos, em buracos negros, na vastidão sem outro nome que infinito. Noite de animais de gelo tão gelado que as brasas dos olhos não sabem derreter. Noite dos espíritos vagabundos, estropiados, desencarnados, temerosos da eterna desventura. Noite dos caluniados, dos esfomeados, dos alucinados, dos sós.

Noite de água e platina, do cio das rãs, do bailado dos vagalumes, dos tambores no longe, da sarça ardente, da lua.

Noite minha, noite de ninguém.

Noite.


Licínia Quitério

25.11.11

O RIO



Tão pequeno o rio grande dos meus anos. Um quase nada, mais de securas que de enchentes. Modesto rio, pouco sabe de barcos e de barqueiros de travessia. Sofre o rio quando os salgueiros choram, ou as canas assobiam, ou os choupos lhe crescem nas entranhas. Estremece, cintila, com a prata fervilhante das tainhas. Sabe tudo da vida e da morte dos que uma vez o olharam. É preciso saber falar com um rio assim. Em silêncio, com as mãos despidas, os pés firmes na curva da tarde, os olhos líquidos de memória. E esperar pela resposta que ainda não veio, mas virá. O pequeno rio grande nunca falha uma promessa.


Licínia Quitério

23.11.11

AMANHÃ SERÁ



Tombou em despedida, um fino arco luzente, lá nos confins da linha onde repousa o céu. Brilhante este dia que morre cumprindo as incertezas do outono. Sol que me aqueceu, me reconfortou os sentidos e me clareou os olhos de ver o mundo. Amanhã será. Amanhã serei.


Licínia Quitério

12.11.11

VENTANIA


Um desaforo! era o que diziam as mulheres de negro esconjurando a impertinência do vento súbito pela tardinha. Desrespeitador, desarrumador de formas e de cores, para não falar dos lugares, num ápice despidos ou vestidos do que há pouco se supunha estável, imutável, a bem dizer eterno, na medida da humana perenidade. Voa o que não tem asas e sobe, sobe, para logo poisar em qualquer campo, em qualquer degrau, em qualquer fenda, na cova mais funda das covas fundas,  no píncaro dos píncaros, no bolso do avental negro das mulheres de negro. Ah vento ruim! diziam os pescadores de mar roubado, com olhos arregalados como os dos peixes há muito perdidos. Vento dum cabrão! rosnava o Jacinto Coxo agarrado ao pau de fio que para ali ficara, tão sem préstimo como a sua perna definhada.

Clarisse afastava a cortina e deixava um leve, leve sorriso seguir o redemoinho das folhas das tílias. Estás tão despenteado! e não era  do vento que falava.

Licínia Quitério    

11.11.11

VOLTEI A OUVI-LOS



Voltei a ouvi-los na manhã de sol, com o frio da noite adormecido na relva do jardim. Não lhes vi o vulto, não lhes sei o tamanho, a idade, se a têm. A sua fala continua sibilante, entrecortada, de sílabas sem vogais, porventura apagadas por outros geniozinhos de maus humores e vizinhanças não desejadas. Era chegado de novo o tempo do concílio, em torno do pequeno arbusto, no seu dia único de florir. Só eu sei o que decidiram, mas não o posso revelar, sob pena de nunca mais serem visíveis a meus olhos as flores do desejo de aqui voltar, nos anos todos que me pertencerem.

Licínia Quitério

6.11.11

JÁ AQUI ESTIVEMOS



Já aqui estivemos, lembras-te? No tempo das manhãs frias e da teimosia daquele sol que não me deixava parar de sorrir. Havia patos. Ou cisnes? Já não me lembro bem. Sei que ficava longamente a olhá-los, a espiá-los até à casinha de juncos. Um tufo, claro, mas eu gostava de dizer casinha e tu abanavas a cabeça: Não ganhas juízo, miúda? Sim, ainda gosto de ver o que lá não está. Ou está e, garanto-te, chama por mim às vezes. Baixinho, baixinho. Pois, talvez sejam tontices de poeta. Quem dera... Porquê? Ora, porque doem. Agarram-se ao fundo dos fundos mais fundos da memória, esgravatam ínfimos grãos de uma cama salgada que não sei o que é, ou quem é, mas sei que fica em mim, no sítio de mim que nunca vi nem sei que forma tem nem sequer se já nasceu ou se morreu há muitos, muitos séculos, quando os cisnes, ou os patos, e tu e eu vivíamos as manhãs frias com a determinação das grandes aves de viajem. Vamos, sim, tens razão, com um café isto passa.

Licínia Quitério

1.11.11

A ESTRADA DE CLARISSE



"Não, não está escuro. Caminha de olhos fechados. Não tenhas medo. Sente a terra debaixo dos pés. Vai em frente, devagar. Não abras os olhos ainda. Sim, cheira a água do rio. E a ervas também. Continua. O rio não está no teu caminho. Ouves? As rãs. Ouves? As cigarras. Não, não pares. Não abras os olhos. Não tenhas medo. É bom, não é? Quando eu disser, só quando eu disser, abre os olhos. Espera um pouco. Caminha devagar, assim. Agora! Abre os olhos!".

Foi quando a luz das estrelas iluminou o caminho, as árvores, a prata do rio. O escuro ficou lá atrás, nos olhos cegos de outras luzes.

Ainda hoje, passada que foi a foz do rio, há uma voz no escuro a dizer: "Fecha os olhos. Vai em frente. Sente a terra." Depois é só esperar pela ordem: "Agora! Abre os olhos."

E a luz das estrelas volta a iluminar a estrada, limpos os olhos da cegueira dos dias.

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