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12.9.15

SABER FAZER


Gosto de ferramentas, daquelas palpáveis, com nomes como martelos, chaves, parafusos, e mais mil, e de tentar fazer uso delas nas reparações das pequenas avarias que vão surgindo nas casas.
Vem este gosto de quando acompanhava o meu Pai nos consertos caseiros, nas inovações de que ele era capaz, e me ensinava nomes e serventias, dando-me mesmo o cargo de ajudante - Dá cá a chave inglesa, dá cá duas porcas sextavadas, vês este parafuso, tem cabeça de tremoço. E eu, toda ufana, convencida do meu grande préstimo em trabalhos de adultos e, mais importante ainda, trabalhos de homem. 
O certo é que fui treinando as mãos nos gestos de aparafusar, pregar, compor o que estava descomposto, e apurando o gosto por saber fazer.
Cresci, o gosto e o jeitinho ficaram comigo, e tornei-me ajudante de outro mestre, não menos engenhoso,  apreciador das minhas desusadas inclinações, atendendo ao género e à época. Desse tempo, recordo o dia em que foi preciso instalar novo estendal para a roupa e o meu mestre disse - Precisamos de cerra-cabos. Ora eu, que nunca tinha ouvido falar deles, logo ali decidi não perguntar o que eram nem como eram, na minha imaginação surgindo estranhos instrumentos, de medianas dimensões, funcionando sabia eu lá como. Foi na loja de ferragens do senhor Porfírio, que eu adorava frequentar, que percebi o engano, que a homófona me tinha traído, que afinal a tal engenhoca não serrava mas cerrava, o que me fez soltar em voz de espanto - É isto? O senhor Porfírio, porventura sem entender a minha interrogação, limitou-se a dizer – Quer maior? Não temos. Lá trouxe os cerra-cabos que, bem vi, cerraram na perfeição os extremos das cordas, na tensão requerida. 
Esta vivência de proximidade com o saber fazer muito me ajudou quando me encomendaram a tradução do Inglês de um volumoso manual de ferramentas, tantas e tão variadas, que me obrigou a consultar o meu mestre, o senhor Porfírio, e especialistas do ramo, que bem me acolheram, um tanto admirados pelos meus conhecimentos do assunto, sendo eu mulher e escrevente de profissão. 
Hoje, com as mãos menos obedientes, ainda me atrevo a utilizar, se necessário, os tesouros da minha caixa de ferramentas, agora maneirinha, mas provida das armas necessárias com que se consertam os desconsertos da casa.
Tenho pena de não saber outras artes de consertar mundos. Talvez noutra vida, noutras vidas, sabe-se lá.

Licínia Quitério

3.9.15

CARTAS A LAURO



Apetece-me escrever cartas de amor, daquelas bem ridículas que se escrevem para nunca serem lidas, porque, dizem, o ridículo mata e eu já não tenho idade para morrer de amor. Que há uma idade para morrer e também uma idade para o amor.
Façamos de conta que tenho dezanove anos, ou mais, vinte e nove, é melhor assim, quase trinta, a tal idade de Balzac, mas isso era no tempo de Balzac, quando as mulheres começavam a amar muito cedo e deixavam de amar também muito cedo. Não decidi ainda como começar a carta, um princípio é sempre um tempo tão difícil, um passo no escuro, uma escrita na água, tudo tão incerto, tão sem propósito nem feitio. Meu bem, meu amor, meu X. É-me indiferente, desde que seja declaradamente possessivo. Não, é melhor dizer apenas nome dele, em diminutivo, um pequeno carinho, as mulheres gostam de diminutivos, em inho, em ito, o Zezinho, o Joãozito. Os homens preferem encurtar os nomes delas e reduzi-los a uma, duas sílabas, a Bé, a Zuca. Pelo menos era assim no meu tempo de ensaiar paixões, de as inventar, de as matar antes de terem nascido.
Vou mesmo começar a escrever cartas de amor.



      CARTA 1

Lauro,
Escrevo-te para te dizer que aprendi a amar-te muito tempo antes de te ter encontrado naquela noite, naquela sala de música e conversa, quando não éramos mais do que passageiros de vidas únicas, solitárias, livres. Reconheci-te, de outros encontros, de outros livros, de outros filmes, de outras batalhas, de outros caminhos por onde provavelmente nunca passaste e nem eu mesma sei se os percorri. Quando me disseste, o que achas disto, e te referias a um vago projecto que os teus olhos já desenhavam, eu respondi-te qualquer coisa como, é isso mesmo que eu quero, com uma tal certeza nas palavras e na voz que uma interrogação se cravou na tua testa e as minhas mãos se moveram, perdidas de mim.
Não era tarde nem cedo, nem noite, nem dia. Era o olho do furacão, era a brancura do alvo, era água a nascer. Era também alguma ave que morria, que eu bem vi a pluma que poisou na mesa e tu sopraste, e eu soprei, e eu disse princípio e tu disseste fim.
Terá sido este o tempo de começar o amor. É o que eu digo daquela noite. Será assim, ainda que digas que não estiveste lá, naquela sala, naquela noite. Há pormenores que não devem constar de uma carta de amor. Há palavras que não pertencem ao amor.
Deixo-te um beijo.
Laura


       
       CARTA 2

        Lauro,
Conforme queria dizer-te na carta de ontem, eu já te sabia de cor havia muito tempo, daquele saber sem tradução em língua viva, talvez nascido numa fala tão antiga que dela não podemos ter memória. Poderias vir ao meu encontro, ou não, em qualquer volta da estrada, num amanhecer de lírios ou numa noite de cardos. O teu rosto seria apenas um rosto, sem idade, um rosto que espera o seu tempo de madurar ou desistir, com uma ruga ondulante a atravessar a testa, o sinal da tua chegada que eu haveria de acolher, no mais doce campo de silêncio das nossas vidas.
Um dia havias de me dizer que tudo não passou de uma folha de cálculo de probabilidades, do comprovativo de uma das leis de Murphy, pura matemática, pura abstracção, que o amor não era mais do que uma teoria dos limites, nunca provada, porque assim devia ser. Eu nunca soube de ciência, nem de leis universais, nem de números ímpares, e muito menos de quadrantes solares que tu te esforçavas por construir, em salas sombrias que me entristeciam e onde, dizias, estava tudo, sendo tudo o mesmo nada de que te alimentavas. Isso foi depois. Voltarei ao assunto noutra carta.
Hoje recordo o relâmpago nos teus olhos, naquele primeiro encontro, quando, à despedida, eu só fui capaz de dizer, sei exactamente como és, e tu nada disseste, e deixaste escapar um sorriso desajeitado, de quem teme a nudez e a deseja.
Ainda hoje te vejo com esse sorriso.
Fica um beijo.

Laura



        CARTA 3

Lauro,
Escrevo esta para te dizer que finalmente arrumei os papéis daquele monte, sempre a ameaçar ruir, que fomos juntando, porque podiam vir a ser precisos, este fica, este também, que mal faz ficar aqui, depois deitamos fora, agora não, há muito trabalho à nossa espera, há muita gente à nossa espera, há tempo, há sempre tempo, dizias. E foi assim mesmo. O tempo não faltou à chamada. Faltaste tu e até eu faltei. Os papéis, esses, continuaram lá, a somar desequilíbrios, a exercitar derrocadas. Cheguei a pensar que tinham vida própria, que me espreitavam, que me provocavam, que se riam da tua inércia, da nossa inércia, da nossa vaidade de termos tempo, da nossa incapacidade de arrumar passados.
Foi numa destas tardes de morrinha, quando as estações do ano se baralham e as nossas dores também, que decidi mergulhar na pilha de folhas de todos os tamanhos, de todas as cores, a guardarem capítulos da nossa história. Puxei uma delas, e outra mais acima, e outra mais recolhida, e outra, e muitas, muitas outras, até sentir apoderar-se das minhas mãos um frenesi e o meu corpo num balanço, ano acima, ano abaixo, vida acima, vida abaixo, a desfazer o que tanto tempo nos levara a edificar.
Era já tarde quando o cansaço me fez parar, com uma dor a ameaçar-me o peito, como se fosse desatar num choro, mas, tu sabes, eu raramente choro. Adormeci ali mesmo, na cadeira junto à mesa, a pilha desfeita, o chão atapetado de folhas de papel.
Comecei esta carta a dizer-te que arrumei finalmente os papéis. Foi o que fiz. Vão ficar ali no chão, espalhados, tal qual as folhas do Outono na nossa rua. Na Primavera, se ainda não tiveres voltado, talvez arranje uma árvore onde os pendure e fique à espera que a nossa história, qualquer dia, se abra em flor.
Espero que tenhas gostado de saber.
O beijo.

Laura


CARTA 4

Lauro,
Há já bastante tempo, escreveste-me uma carta que trazia por remetente o teu nome e um número de guerra. Não era bem uma carta, era um papel dobrado e fechado que servia de carta e de envelope. Isto foi num tempo estranho que nos aconteceu e em que as mulheres recebiam papéis assim dobrados e fechados, que abriam com o coração a bater muito, sabiam lá elas se na mão que tinha escrito ainda corria sangue de vivo ou se o dono da mão já não estava a ela preso.
Foste sempre de poucas palavras e todas as que quiseste dizer couberam naquele arremedo de carta. Não vou repetir o que escreveste, o papel já se sumiu na voragem das mudanças, mas sei de cor as palavras, ainda tenho uma boa memória. Fiquei parada no lugar, no tempo, o papel suspenso nos dedos ou os dedos suspensos dele, e já a tarde se encobria quando comecei a andar, a andar, não sei para onde, não me perguntes, a gente às vezes anda porque tem de andar, não pode fazer mais nada, e depois é difícil parar, lembro-me de ter parado porque alguém perguntou, onde vais, e eu pensei que era alguém com a tua voz, e parei, e voltei ao lugar fora de tempo donde tinha partido, o papel sempre suspenso dos dedos da mão.
Nunca respondi a essa carta, que não era bem uma carta, porque nela dizias que não tinha resposta, que não querias saber de resposta, isto já eras mesmo tu a avisar que o tempo e o lugar estranhos que te tinham cabido não seriam nunca explicados, as coisas não se explicam, entendem-se ou não, como costumas dizer.
Nem penses que hoje ensaiarei uma resposta, neste meu recente afã de te escrever, de me escrever. Apenas deixo estas linhas como se fossem uma carta-resposta a outra que nem talvez tivesse chegado, que, sabes bem, eu às vezes deliro e tu, paciente, olhas-me com aquele sorriso de sempre, tão desajeitado.


Tua

         Laura



CARTA 5

Lauro,
Venho dar-te notícias do Inverno por aqui. Presumo que para ti continuem a não ter grande importância as estações do ano, já que passas por elas sem as nomeares, nem as aplaudires, nem as exaltares. Adivinho que continuas com o botão da camisa aberto, aquele junto ao pescoço, só um, que no Verão abres dois e assim contentas as pessoas que se admiram de não mudares de vestimenta.  Eu não, eu continuo a ser a rapariga que tem muito frio, muito calor, que fala do tempo como qualquer britânico que se preze, que gosta das estações dos equinócios e não do Sol a pique, nem da neve. Nunca me esqueço daquela vez que subimos a uns dois ou três mil metros de uma montanha de um país, que hoje já nem se chama assim, e tu em mangas de camisa, e a quem te dizia, não tem frio, tu respondias muito naturalmente, estamos no Verão, e estávamos, assim diziam os calendários e o dia esplendoroso no sopé da montanha. É essa a tua lógica de viveres, eu sei, embora às vezes me aflija, sem saber se estás presente ou ausente, porque esse olhar está em todo o lado e em parte nenhuma e eu, sim, também sou de ausências, mas é diferente, eu sou mais presa aos dias, enquanto tu há muito te libertaste do incómodo dos objectos, das conversas vãs, das datas que toda a gente carrega como marcos de comemorações, alegres ou tristes, próximas ou distantes. Um dia também serei assim, como tu, ou como imagino que tu és, e isso será no Inverno em que estaremos juntos de novo, não neste ainda, que está carregado de frios e de troncos cinzentos, e era disso que eu te queria dar notícia ao começar esta carta, mas, tu bem dizes, miúda vamos ao que interessa, a abreviares o assunto, e fazes bem porque quando começo a falar nunca mais me calo. 
Pelo sim, pelo não, fecha o segundo botão da camisa.


Um beijo.

Laura

CARTA 6

Lauro,
Espero que estejas bem, meu amor. Escrevi “meu amor” e logo me admirei do vocativo que uso tão pouco, menos ainda do que tu, na nossa devoção pelo sentido das palavras que não devem ser desperdiçadas, poluídas, na usura da banalidade, do automatismo que as menoriza, as mata. Hoje disse e agora sei porque o disse, mas não vou explicar, tu logo adivinharás, mesmo estando aí, nesse lugar tão longe e tão perto. Adivinhação tem sido um dos nossos jogos de muito silêncio e fortes respirações e de uma faiscante alegria quando quase gritamos a solução, em uníssono, triunfantes por instantes sobre a vida, sobre a morte. Não encolhas os ombros, no habitual disfarçado apreço pelas minhas divagações, a espicaçar-me a vontade de ir mais fundo, mais além. Eu tento, eu esforço-me, e por vezes encontro o caminho, a rua, a página, a palavra certa para chegar ao velho, à criança, ao estropiado, a um dos simples que tu elegeste e me adoptaram.
Mudando de assunto. Nem imaginas como os putos cresceram. Altos, bem mais altos do que tu, uns homens no patamar das vidas, simpáticos, desprezando brilhos, parangonas, atentos às pequenas coisas, saboreando-as, numa postura de homens-crianças que assim hão-de ser, espero, por muito mais tempo. 
Um regresso é sempre um balcão de espantos. Prepara-te para o dia. Não te apresses que ele há-de chegar, disso sabemos.

Amo-te.


Laura

CARTA 7


Lauro,

Aí por onde andas agora, duma coisa tenho a certeza, nunca de mim dirás a “minha mulher”, ou a “minha” companheira, ou a “minha” seja o que for. O meu nome dirás, ou o nome que me deste e que é meu também, precedido do artigo bem definido “a”. Nunca fui tua nem tu és meu. Somos assim, dois, não os mesmos, bem diferentes, a cada um a sua virtude, a cada um o seu defeito, a cada um o seu gostar, o seu fazer. De tão desiguais que somos se faz uma peça única, na alegria e na tristeza, na celebração dos ritos, no não dito desencanto. Não decoraste a cor dos meus olhos, nem dos meus cabelos, mas sabes de cor a minha voz e eu a tua, cada uma com seu timbre, único, intransmissível, todavia conjugáveis. Se tivesses um duplo, um duplicado, um outro igualzinho ao que de ti sei, e ele cruzasse o meu caminho, talvez eu me perdesse e na próxima carta te dissesse, de certo modo já voltaste, de certo modo não te foste embora. Sei que, se isso pudesse acontecer, dirias, tu é que sabes, ainda que a tua mão tremesse e acendesses mais um cigarro, havendo outro a arder no cinzeiro. Não, por agora é por ti que espero, imperfeito e original, de liberdade feito, impaciente nos dias, meditativo nas noites, afirmando não saber de poesia, que isso é comigo, a indicar-me o caminho sem nunca o dizeres, a preparar a viagem sem nunca dela falares. Lembrei-me hoje de te falar disto, da diferença que fizemos, que fazemos, porque encontrei aquele amigo que era teu e passou a ser meu também, o A., e referiu a noite da passagem de ano em que eu bebi demais e desatei a falar sem parar. Foi o serão em que eu declarava, disse o A., para que todos soubessem, numa repetição inflamada, “com ele eu sou eu, com ele eu sou eu, com ele…” e tu olhavas-me, sorrias e abanavas a cabeça, numa fingida censura ao meu entusiasmo, à minha exuberância desusada. Confesso que me senti um pouco envergonhada com a lembrança que o A. me trouxe, tantos anos depois, de que já não me recordava e que agora aqui te trago, nem sei bem porquê, ou sei, mas não te vou dizer hoje. Tu adivinharás, sempre adivinhas.

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