Na loja da dona
Custódia havia tudo, cabia tudo, nada se limpava, nada se fiava, nada tinha
peso certo, nada tinha preço certo. A montra da loja da dona Custódia era um
amontoado de objectos, grandes, pequenos, médios, de caixas, mais ou menos
amolgadas, de moscas mortas de tédio, lá pelo meio. A loja onde reinava,
absoluta, a dona Custódia, era um armazém de objectos, de sacos, de sacas, de
tulhas. No balcão que sobrava dos objectos, dos sacos, das caixas, dos papéis,
cabiam a balança e a os braços da dona Custódia que se adiantavam até às mãos
dos fregueses a quem pedia que mostrassem o dinheirinho que traziam, antes de
aviar a encomendinha. Falava por diminutivos, com ternurinhas de beata, o dinheirinho,
a moedinha, meu menino, minha menina, pede mais dinheiro ao paizinho, diz à
mãezinha que a Custódia não tem, valha-te nossa senhora, quem não tem
dinheirinho não tem vícios. Era assim. Toda a gente ia à loja da dona Custódia,
porque lá havia de tudo, de tudo o que mais ninguém tinha, de tudo o que já
ninguém supunha que havia. A ratoeira para os malandros dos ratos, o petróleo
para o candeeiro, o vidro para o candeeiro que
pum! estalara, o candeeiro, a torcida para embeber no petróleo do
candeeiro, o bocal para o candeeiro que o outro estava todo retorcido, os
fósforos para dar à luz. Na dona Custódia havia tudo. Muitas vezes, a dona
Custódia demorava a fazer o avio, porque não era fácil sacar um vidro de
candeeiro que morava na prateleira mais alta, à esquerda de quem entra, mesmo
por detrás dos atados de chinelos, e das fitas peganhentas para apanhar moscas.
Valha-te deus, menino, que trabalhos estás a dar à Custódia. A dona Custódia
roubava no peso, no preço, na qualidade. Toda a gente sabia e gostava. Era
assim. Ela tinha tudo o que fazia falta. Menos bondade, lá isso, mas uma pessoa
com tanto dinheiro e um marido cobardolas em quem mandar não podia dar-se ao
luxo de virtudes para além das que a santa madre igreja ordenava e de cuja
falta sempre absolvia, mais padre-nosso, mais dízima à paróquia, mais mordomia
pelas festas grandes. Era assim no tempo antigo do fado antigo da dona Custódia
de carrapito e óculos de aros negros, redondos, de mãos estendidas para os
dinheirinhos dos meninos.
Licínia Quitério |
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