Morreu, o cão. Nos seus anos de ser cão, quase duas décadas deviam ter
passado. Agora a dona não traz as duas voltas da trela acrescentadas às
pulseiras várias e coloridas. Tem mais simetria no andar, mais disponibilidade
do braço para ajeitar com elegância o chapéu que faz mudar com as estações do
ano. Os olhos, escandalosamente azuis, não dizem dos seus anos de dona. Na
falta do velho cão que lhe alentava o passo, adianta-se ainda mais ao dono que
envelhece largamente nos seus anos de dono e que tem um braço para a bengala e
o outro para os grandes sacos que a dona faz questão de encher de belezas e
saudades. Não se consegue saber a que filme pertencem, a que livro, a que
quadro, a que história que nos tenham contado. Devem ter-se amado loucamente, saltado
barreiras, regressado a conveniências, a velhas caixas. Chegou o tempo, este,
de se detestarem. Daí a aspereza com que ela lhe fala, ao sacudir, com as
costas das mãos de veias azuis e verniz escarlate, as migalhas de bolo que ele
sempre deixa cair na aba do colete de teen-ager. Os olhos dele estão cada dia
mais pequenos, mais baços. Tenta acompanhar o andar apressado da sua Miss Daisy
mas é obrigado a parar, por momentos, o fôlego a quebrar, a raiva a crescer, a
mão na haste da bengala, num simulacro de golpe de Zorro na colecção de cromos,
escondida no forro da gaveta da mesa de cabeceira. À vista do fim, o amor
torna-se insuportável, sufocante, e vira do avesso onde se lê o ódio. Um deles irá à frente, naturalmente,
terminada a contagem dos seus dias de gente. O outro chorará, sinceramente, o
amor perdido, o tempo perdido, o cão tão bom amigo de homens e mulheres que
outras histórias não gostam de contar.
Licínia Quitério |
2 comentários:
"À vista do fim, o amor torna-se insuportável, sufocante, e vira do avesso onde se lê o ódio. "
Licínia, estimada amiga,
uma confissão: faço (além do dito "profissional"), voluntariado em Lares, com idosos. já observei estes comportamentos, sem dúvida. é assim, nalguns casos. e dói.
belíssima escrita.
grata
um beijinho
Mel
O fim tudo pode transformar, ou para pior ou para melhor. Dependerá da ligação que se tem com ele, se calhar até gosta de ser bem tratado...
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