Tomara acabem as férias dele. Para eu ter as
minhas. Homens em casa, sabe como
é. Isto diz a dona da pelagem loira coberta de uma pasta esbranquiçada que a
havia de tornar de um loiro mais aberto, segundo ela declarara à menina
cabeleireira. Mal acabara de falar, cala-te boca. O cão ladrou e o dono disse
entre portas fica aí. E bico calado. Ficou, a trela amarrada a uma das grades
do alpendre, a pelagem cor de café com leite recentemente tosquiada, hirsuta e
abundante apenas nas orelhas e na cauda. A t-shirt de manga à cava e os calções
deixam escancaradas grandes porções dos membros superiores e inferiores, do
peito e das costas, forrados todos de uma pelagem negra, longa e espessa. O fio
de ouro, grosso, de malha batida, com crucifixo, brilha pelo meio daquela
selva. Uma tentação para a ladroagem. Bem lhe dizia, mas ele ai do filho da mãe
que se atreva. Leva que contar. Exemplificava, a mão em cutelo, uma perna
atrás, os joelhos flectidos, num arremedo de artes de defesa com nomes
impronunciáveis. Um homem pronto para ir à praia, com as suas havaianas verdes, a dar
com a t-shirt, essa de um tom mais discreto. Faz rodar, no pulso direito, uma
fitinha cor de laranja que diz Porto Galinhas. Este ano, conta ela, compondo o
botão que se desabotoara mesmo no meio do peito, ficaram pela Tunísia.
Gostaram. A comida é que tinha sido um problema, especialmente para ele que só
gosta dos cozinhados dela. O hotel, isso sim, uma lindeza. Até pétalas de
flores lhes punham em cima da coberta da cama. Quem não gosta de um luxozinho
de vez em quando, replicava a menina cabeleireira, com olhos de telenovela. Ela
ajeita na cadeira os quilos a mais, pega no leque e abana-se, com expressão de
fastio. Ah o Verão, o Verão. Não veste bata de dona de casa, mas é como se vestisse. Talvez
sugestão do padrão do tecido da blusa, miudinho, em fundo escuro, para não se
notar tanto a sujidade. A expressão, o gesto, esses são de professora primária,
do tempo em que assim se chamavam e a escola assim era. Ele aproxima-se dela, o
cão fora do alpendre a pedir festas, a companhia da dona, o rosto perto do
dela, a fala num segredo, quase a roçar a pasta de tinta esbranquiçada rente à
orelha. Por detrás dos óculos, tem o olhar assustado dos míopes. A careca não
condiz com o traje decidido a grandes ares, grandes mares. Ela não deixa que a
lamba, concede uma festa ao cão, na área tosquiada, distraidamente, da testa à
nuca. Senta-te ali. Aqui fazes-me ainda mais calor. No alpendre há um latido
frouxo. Ele vai escorregando pelo braço da cadeira em que se apoiou,
escorregando, sentando-se, enroscando-se. Ela grita deixa-te de graças. O
latido do cão no alpendre cada vez mais frouxo, mais espaçado.
No 112 não pode ir o cão, o da pelagem cor de café com
leite. Diz a lei.
Licínia Quitério
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