A aula de Religião e Moral, assim impropriamente chamada,
que a religião tratada era só uma e moral era coisa não abordada, era uma das
mais divertidas nos meus tempos de liceu, de classes mistas, de ensino privado
que na terra não havia outro. O professor era padre católico, pois claro, boa
pessoa, mas tremendamente inculto e incapaz de manter disciplina na aula onde,
ao contrário do que muita gente hoje presume, já reinava uma balbúrdia colossal
a infligir grandes tormentos ao pobre do padre que a eles respondia,
regularmente, com chapadões da sua manápula bem fornecida, sem que isso
resolvesse o clima anárquico da aula seguinte.
Eu gostava da aula, deliciei-me a ler a versão da Bíblia das
Escolas, adorava as histórias do Velho Testamento, as do Novo nem tanto. De
vez em quando, o padre projectava uns filmes, creio que em 16 mm, a preto e
branco, com a fita sempre a encalhar e a imagem cheia de riscas e luzinhas. Lembro-me de um deles, sobre o milagre de
Fátima, e de outro sobre a Paixão de Cristo e o padre a fazer o relato das
imagens, e ninguém a ouvir, que a sala ficava às escuras e a malta aproveitava
para comer rebuçados e atirar com os papéis ao ar, os rapazes para apalparem as
miúdas da fila da frente que guinchavam, tudo a fingir que ressonava, a darem
gargalhadas quando Nosso Senhor era pregado na cruz, e o mais que a imaginação
e as feromonas lhes sugeriam. Era uma alegria a aula de moral, como se chamava
em abreviatura.
A parte complicada para mim é que, não sendo baptizada, o
padre entendeu que era sua missão levar-me à pia baptismal, mas, como para isso
tinha de ter autorização do meu Pai, eu passei a ser a mensageira entre o padre
e o pai, entre o pai e o padre, o padre diz que, o meu pai diz que. Convenhamos que para uma miúda de dez ou onze
anos não era a tarefa mais conveniente.
Eu queria lá saber se era bom ou mau ser baptizada, eu queria é que os
dois adultos me deixassem em paz com a questão. Venceu o meu pai que foi falar
com o padre. Eu nunca soube bem como foi a conversa, mas o certo é que deixaram
de me encomendar recados.
Ah e fui proibida pelo meu pai de beijar a mão ao padre o
que me agradou muito, que aquela mão sapuda me dava alguma repulsa. O padre, acalmado nos seus ímpetos
missionários, deixou de me apoquentar e só de vez em quando passava a mão pela
minha cabeça e murmurava: coitadinha, tão boa aluna e não é baptizada. Lembro-o com alguma ternura e hoje compreendo
a sua debilidade perante um homem de fortes convicções como era o meu Pai.
Licínia Quitério
foto da net
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