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18.11.24

ROMÃS

 Dois pequenos frutos pendentes da mãe árvore fazem-nos pensar romã, um nome tão bonito como bonita a sua vermelha redondeza. As discretas coroas conduzem-nos ao Natal e aos seus mágicos reis. Se o nosso olhar neles se demora, os dois pequenos frutos aguçarão em nós a vontade de desvendar os segredos da sua polpa granulosa, em dádiva generosa dos múltiplos translúcidos bagos. Fácil pensar em trincá-los, saboreá-los, um sumo vermelho a pintar-nos os lábios, a manchar o bibe da Menina que fomos, a imaginação à solta, leves, leves…

Licínia Quitério




5.11.24

 2º. FESTIVAL LITERÁRIO DE MAFRA

 

“AQUI também há quem escreva”. Eis o tema desta mesa com três autores de alguma forma relacionados com a vila de Mafra.

Foi o advérbio AQUI que me pôs a reflectir na ideia de lugar geográfico como alibi para quem escreve, qual embalo e respiro, mais ou menos insidioso, mais ou menos perceptível. Este pensamento, aliás, livrou-me do embaraço de não conseguir alinhar algumas palavras a propósito, neste encontro para que fui generosamente convidada.

E foi então que, num refrescar de memórias, me recordei que no meu livro “Os Olhos de Aura”, fiz de Alba, terra mítica, um actor que percorre toda a novela, sublinhando a acção e convocando os personagens.

Da terra, Alba, fala assim o narrador no excerto que passo a ler:

Alba assiste, impávida, aos tormentos dos vivos, à usura do tempo, às derrocadas e às obras, infindáveis obras de construção dos ossos, reconstrução da pele, por necessidade ou por fastio, por sede de mudança que o estaticismo de Alba não estimula. Se Alba se chamou a terra, razão houve ou não. Talvez um som que nasceu numa boca ao madrugar, depois caminhou por outras bocas, e foi mudando, encurtando, ao jeito de quem chegou, e foi nome até ser o vento na chaminé, o choro de criança acabada de nascer. De muitos ventos, muitos nascimentos, Alba foi crescendo, alastrando, como animal deitado a olhar o mar, lá longe, muito longe, só o desenho de um barco no horizonte, só a brisa da tarde que põe na boca um ligeiro sabor a sal. Dos prados se fizeram casas e as casas traçaram ruas, e os rebanhos foram devorados e o lugar deles passou a chamar-se praça ou largo ou terreiro, se for maior e mais antigo. Alba é rósea ao despertar, dourada ao meio do dia, de noite agiganta-se e tudo se dissolve em seu negrume.

Desta terra, Aura, a Mulher, não sabe falar, por isso a inventa, desgraçada e poética, tal qual a insânia e o vento leste."

Termina aqui o excerto do livro.

Claro que Alba não é Mafra, pesem embora certas alusões quase identitárias, mas a ficção é afinal isso mesmo: o poder de tudo enformar, tudo transformar.

Não posso deixar de referir o livro que pôs lá dentro este Convento, à sombra do qual nasci e cresci. Li o Memorial com encantamento, com pressa, e cedo corri ao encontro do autor que assim falava da minha casa grande para a levar mundo fora. Disse-lhe:

“Gostei que me tivesse ensinado a ver Mafra sem o Convento. Agora olho para o monte antes dele e consigo pensar-me doutro modo.”

Saramago ouviu-me, fez um sorriso de boca fininha, fixou-me por breves segundos e deu-me um autógrafo: “À Licínia que é de Mafra”.

Aí está. Mafra é este lugar, esta pedra-mãe, este AQUI aonde voltei para mais viver e escrever, quando os tais ventos sopram de feição. Estou certa de que Alba não teria os traços que lhe dei se eu não fosse de um lugar real que, sem me dar conta, se impôs aos olhos de Aura, a Mulher.

Permito-me afirmar que, se bem procurasse, também haveria de encontrar poemas meus em que Mafra, ou Alba, ou a Aldeia da Fonte Branca, ou outros lugares reais ou imaginados, me segredaram palavras e sentidos que nunca saberei como ali vieram parar. Mas isso são os estranhos, insondáveis, maravilhosos caminhos da Poesia.

AQUI também se escreve, e é isso que importa.

 

Licínia Quitério


Mafra, 3 de Novembro de 2024


 

7.9.24

OS SÓTÃOS

 

Não conhecemos tudo o que guardam os nossos próprios sótãos.

Sabemos de madeiras que revelam o cheiro das árvores-mães.  Pensamos sândalo, ou cânfora ou pau-santo ou outra palavra que aprendemos sem alguma vez termos sabido das florestas do outro lado do mundo.

Nos sótãos há poeiras várias que invadem os espaços, mesmo os que medeiam gerações. Outras ainda não concluiram a queda e adejam contra a luz das frinchas do telhado.

Nunca chegamos a saber o que se guarda nas caixas mais ao fundo dos esconsos. Desistimos de explorar esses lugares sombrios para melhor inventarmos restos de amores impossíveis e histórias de heranças ferozmente repartidas.

Os sótãos guardam os nossos segredos nunca revelados, em escaninhos inacessíveis a mãos humanas, ao abrigo da mais insensata espionagem. Passado muito tempo, já nós não recordamos o segredo que foi nosso e mora dentro da caixa soterrada em mantos sucessivos de poeira lá onde não chega a luz coada pelas frinchas do telhado.

Falar de sótãos não será o mesmo que contar passados, embora a poeira seja igual, permanente, persistente.


Licínia Quitério


11.8.19



15.7.19

DELÍRIOS NA RUA DO SOL

Bebido e comido o que havia para beber e comer, Benito refastelou-se na cadeira, cruzou as mãos sobre o volume do ventre, pestanejou, bocejou e acabou por fechar os olhos e deixar descair o queixo no peito. Tão súbita sonolência terá sido certamente causada pelo solinho bondosamente coado pelas ramadas da cerejeira ou então por ter dormido mal de noite. Não devia ter comido tanto à ceia, mas não resistiu ao resto da carne guisada que a filha lhe tinha trazido ao almoço. Deve ter sido por isso  que a insónia apertou de tal modo que já soavam as quatro no relógio da igreja e ainda ele andava às voltas na cama. Levantou-se, foi beber água, espreitar à janela, nem vivalma, que raio estava ele ali a fazer aquelas horas, e voltou para a cama. Contou carneiros, e nada, duas vezes se levantou para ir urinar, a próstata anda a fazer das suas, o médico avisou-o, falou-lhe em operação, uma gaita, só de pensar nisso vinha-lhe um mau humor dos diabos, ai de quem o contrariasse nessas ocasiões.
Falta faz-lhe a mulher, já oito anos passados sobre a data em que se foi para a terra da verdade e ele não se habitua a viver sozinho. A almofada dela continua na cama, ao lado da sua, olha-a ao acordar e fica sempre triste por ver que continua limpa e lisa como quando se deitou. Às vezes passa-lhe a mão, a alisá-la, ao de leve, na pele a memória da cabeleira dela, sempre bonita, mesmo quando embranqueceu, a bem dizer, ficou ainda mais bonita, pelo menos aos olhos dele. O retrato de Eulália na mesa de cabeceira, a dar-lhe os bons dias, com aquele sorriso meigo que o encantou nos verdes anos de serem namorados, prometidos, como costumava dizer-se.

Licínia Quitério, em "Delírios na Rua do Sol", em publicação

A ALDEIA DA FONTE BRANCA

Solteirão, o Fausto, mulher de aconchego só uma lhe conheceram, mas dela não falam, foi um desvario, um mau passo do rapaz, para a rapariga não passou de aventura, mais uma, sem amarrar saudades. Francesinha de ideias livres, deu-se a provar a um pobre imigrante, conhecido da porteira do prédio. Foi o bom e o bonito, foi. A miúda achou-o giro, nunca se tinha deitado com um português, tinha ouvido dizer que eram um bocado primitivos, mas bons machos, não lhe custou nada convencê-lo à experiência. Fausto não entendeu a rapariga, ou não quis entender, só sabia que uma coisa apetitosa daquelas a cair-lhe nos braços, a deitá-lo na cama, era de aproveitar, parvo seria se o não fizesse. Deu conta do recado, a francesinha delirou, Fausto nem acreditava que lhe tinha saído a sorte grande. Sorte teria sido, sim, se ela não se tivesse fartado do portuga, sexo com ele era bom, mas, “putain”, ele não falava de assunto que tivesse interesse, a bem dizer quase não falava, e Julie, que depois do sexo não prescindia do cigarro e de uma boa conversa, fartou-se mesmo e despediu-o, “salut”, ficamos por aqui. Fausto percebeu como era fácil despedir um imigrante como ele, fosse do trabalho, fosse do amor. No fundo do desgosto, jurou que da cama nunca mais nenhuma mulher havia de despedi-lo. Só ele sabe se a jura se cumpriu, certo é que o tempo passou e Fausto continua o solteirão macambúzio, que uma vez amou Julie, que uma vez foi rejeitado por Julie. No outro dia viu uma mulher que lhe pareceu Julie. Ele ajudava na descarga de um camião de móveis, ela estava sozinha, sentada na esplanada do café em frente. Fumava, o cigarro entre o polegar e o indicador, como Julie antigamente, traçava a perna, um dos pés a fugir para debaixo da cadeira,como Julie antigamente. Uma mulher de meia idade, atraente ainda, talvez fosse Julie. Quantas vezes já viu mulheres que lhe pareceram a sua Julie, que sua nunca foi, mas sua gosta de a pensar. Para essas visões recorrentes, Fausto arranjou uma explicação, Julie é uma mulher vulgar, igual a muitas outras, mas outra explicação há-de haver, um dia há-de descobri-la, para se ter apaixonado por ela.

Licínia Quitério, em "A Aldeia da Fonte Branca", a publicar 

OS OLHOS DE AURA


Acordou, como sempre, antes dele, hoje mais cedo até do que o costume, foi a ventania a fazer batucar a janela da marquise, mal fechada, o sono já era leve, de sonhos em novelo, aflitos, ainda bem que acordou antes que viesse aquele peso no peito, que coisa estranha, era como se alguém lhe pusesse um pé em cima, com a força do corpo todo, mais força, e ela sem se poder mexer, um dia contou-lhe o sonho recorrente, tu sonhas muito, até sonhas acordada, deves andar a ver muitos filmes, passa-me mas é a manteiga.
Está frio e faz vento, lembrou-se de pôr aquele gorro vermelho, gostou de se ver no espelho, puxou uns fios de cabelo para a testa, um assomo de franja, a meia idade a fazer-se sentir, uns quilos mais, os vincos aos cantos da boca, mas de resto ainda é uma mulher atraente, os grandes olhos tristes dão-lhe um não sei quê de artista de cinema, disse-lhe o Américo, e logo a desculpar-se pelo atrevimento, não me interprete mal, com todo o respeito, delicado o chefe, um pouco fora de moda, seria por isso que o marido lhe chamava larilas, ninguém sabe o que um homem é por dentro, lembrou-se da mãe, mas já está na rua, o ar frio na cara, os olhos a encherem-se de lágrimas, desta vez é do frio, sorri ao pensar que também há lágrimas boas, de mulher viva, a abrir o dia.
Licínia Quitério, em "Os Olhos de Aura", 2017

A METADE DE UM HOMEM


A pátria sabe a gin tónico com rodelas de chouriço, isto disse o Sousa na tarde em que de tão bêbado contou que tinha visto cabeças espetadas em paus, na beira da picada. Brancas ou pretas, foi o que perguntaram e ele já não respondeu. Caiu de borco, tiveram que o arrastar para dentro da caserna e ali ficou dois dias em delírio de febre. Aquele calor punha lâminas sujas nas palavras.
Nervoso, na previsão de uma operação no mato de madrugada, atormentado pelo silêncio que era de pedra e doía, Zé Manel desejou com toda a força uma voz que o cortasse, uma voz doce de mulher, mulher branca, uma voz que lhe cantasse baixinho, only you…, uma voz que apagasse as das outras mulheres, as pretas, que guinchavam como os coelhos na capoeira da mãe quando ela os pegava pelas orelhas, hoje vais para o tacho, vais. Elas guinchavam de igual jeito quando os homens brancos as pegavam, as deitavam à força no capim, as penetravam, loucos de cio, de cantáridas, de pólvora, de guerra. Na escuridão da noite africana, a voz da Ju, only you…, e ele, de braços erguidos, prontos a abraçar a dona daquela voz, que o visitava, finalmente apareces, por onde tens andado. O Baptista a abaná-lo, acorda, pá, são horas, os cabrões hoje não nos escapam, e os olhos do Baptista estavam vermelhos, grandes, pareciam querer desorbitar-se.

Licínia Quitério, em "A Metade de um Homem", 2018

28.2.18

A GENTE VAI



A gente vai e abraça os conhecidos e mais os outros que aparecem para uma conversa sobre a vida e sobre os livros e os projectos de mais vida e de mais livros. São falas em várias línguas, em redor de uma mesa, onde se vai comendo e falando e falando mais do que comendo, não porque as iguarias não sejam boas, mas porque todos têm vontade e pressa de falar. Todos menos eu que oiço mais do que falo, por condição e defeito e também porque me encanta ouvir o que dizem, procurar entender todo um vocabulário muito rico de construções e modulações, numa orquestra a muitas vozes, muitos risos, muitas exclamações.
A gente volta com os ecos das palavras preciosas, vibrantes, guardadas no ouvido interno, por uns tempos, talvez segundos, talvez meses, enquanto o coração lhes der guarida.

Quem regressa é sempre o outro, diferente do que foi, acrescentado, provavelmente melhor.

Licínia Quitério

26.2.18

OS VENTOS


Estão por toda a parte. Altos, esguios, com suas três velas atraindo os ventos. Erguem-se em bandos cada vez mais numerosos. Quando escurece, acendem um olhito não vá algum avião ou avejão com eles embater, trucidar-se. São afinal ventoinhas gigantes, altivas, de corpos anoréticos, rodando, rodando, enxameando colinas, relevos, zumbindo, zumbindo. Ao pé delas, os velhos moinhos de vento e farinha parecem anõezinhos reformados, saudosos dos seus tempos de convívio diário com os homens, seus donos e companheiros de labuta. Chamavam-lhes moinhos de vento. Dos novos, para que algum passado lhes seja conferido, dizem que são eólicos. Velhos, novos engenhos. Só o vento é o mesmo, caprichoso, suave, arrasador, genioso, invisível, eterno como a vida.

Licínia Quitério

20.2.18

PESAVA, SE PESAVA...


Pesava, se pesava, o balde de plástico azul, cheio de pequenas maçãs. Quase tanto pesava, se pesava, o saco com verduras, de mistura com batatas e cebolas. Longe ficava, se ficava, a loja conveniente aberta também aos domingos. Perigosa, se o era, a travessia da rua, os carros para baixo e para cima, e, ainda pior, o cruzamento, nunca se sabia de que lado iam aparecer os malvados carros. A rua empinava, se empinava, dali até à porta de casa.
Houve que descansar, pois houve. Encostou-se ao poste dos anúncios, poisou o balde, o saco. Bom seria, isso nem se fala, ficar ali para sempre, a apanhar o sol da manhã, deixar-se escorregar até ao chão, entre o balde e o saco. Os carros para baixo e para cima, zzzzz, zzzzzz, a dar-lhe sono, a fazê-lo fechar os olhos.
Avôzinho, precisa de ajuda. Não, senhor, agradecido.
Dobrou-se, pegou no balde, no saco. Pesavam, se pesavam. A porta de casa já à vista. Era só subir mais uns metros da rua que empinava, se empinava.

Ajuda, qual ajuda, sou algum velho, algum inútil?

Licínia Quitério

27.1.18

UMA PEQUENA ALDEIA



Numa pequena aldeia do litoral, ao fim da tarde, uma velha senhora foi violentamente agredida por um intruso que procurava dinheiro. Uma filha que com ela vive conseguiu pedir socorro que apareceu prontamente. Um jovem vizinho imobilizou o assaltante que foi levado pelas autoridades. A senhora está no hospital, foi operada e, como se diz, está estável. O que me ficou da notícia foi a eficácia da vizinhança, o pronto socorro, a ajuda, a comoção. Na aldeia todos se conhecem e são quase todos familiares que entre si trocam produtos das terras que ainda vão amanhando, que velam pela segurança dos mais velhos, que acolhem visitantes e dizem, leve estas florinhas, prove lá esta pinga. Não são perfeitos, são humanos, vivem em casas baixas, conhecem a aldeia e a vila próxima, mas são de lá, da terra pequena de campos arejados. É o sentimento identitário que os vai salvando, dos assaltantes, da solidão, da indiferença das novas selvas. Estou há horas a pensar nisto. Coisas minhas, sem importância.


Licínia Quitério

21.12.17

O POÇO


Na praia um poço de oiro. Viram-no, as gaivotas. Uma delas bebeu um golo da súbita incandescência. A pele do mar ganhou escamas miúdas de luz e sombra. A areia ruborizou-se ao receber certa hora dos mágicos. Foi o solstício e eu estive lá.

Licínia Quitério

15.12.17

OS MICROCOSMOS





Em pequena eu construía jardins, miniaturas de jardins. Uma pétala era uma flor, um pecíolo um tronco de árvore, uma folha podia ser um lago, que um jardim sem lagos não é jardim. Folhas secas esmagadas desenhavam caminhos por entre aquela vegetação toda. Eu preocupava-me com a simetria dos canteiros, por isso os meus microjardins pareciam-se com os jardins barrocos, digo eu agora. Eu gostava de construir mundos pequeninos onde me pudesse passear sem ser levada pela mão. Mundos sem os perigos que os adultos temiam. Revolvia a terra com as mãos na cata de pedras minúsculas, de preferência de várias cores. Ocupava muito tempo a limpá-las e depois a construir com elas cidades pequeninas. Uma pedra uma casa, outra pedra outra casa, muitas casinhas. Só faltavam as pessoas, ou não faltavam, porque às vezes eu  podia vê-las, muito apressadas, de casa em casa. Algumas corriam e eu só não podia saber de que cor eram os olhos delas, porque isso era muito difícil de pensar. Também gostava de ver as minhas cidades vermelhas, com pessoas vermelhas, que subiam e desciam e saltavam nas brasas da lareira. De manhã já não havia ninguém nessas cidades que passavam a ser escuras, sem graça, e eu queria mesmo era saber para onde tinha ido toda aquela gente que eu tinha visto ao serão. Os meus jardins cresceram, as cidades também, e hoje sei que há de facto cidades vermelhas de gente viva e cidades escuras de gente morta. Sei, e por isso, sempre que olho o fogo na lareira, volto a admirar aquela gente pequenina numa grande azáfama, a subir, a descer, a saltar. Às vezes adormeço e quando acordo a lenha já não arde. Levanto-me sem olhar para a escuridão das cidades, quero dizer, da cinza na lareira.

Licínia Quitério


26.11.17

A SECA



A seca é real, palpável, triste. A gente lê os jornais e percebe que há animais a morrerem de fome, outros não se reproduzem, outros abortam, adoecem, porque sem água não há pasto. Os peixes não conseguem subir os rios porque estes não levam água que chegue e não farão a reprodução. Os pescadores de rio perdem os seus proventos, tal como os barqueiros de travessia, porque os rios se atravessam a pé. Da torneira continua a correr água, no supermercado continua a haver hortaliça, e nós, os urbanos do litoral, somos levados a acreditar que há nisto tudo um exagero, que a chuva há-de vir, que não há-de ser nada. Que sabemos nós da Natureza, da Vida? Há muito que esquecemos. Talvez os vindouros tenham que reaprender o que esquecemos, na melhor das hipóteses.

Licínia Quitério

23.11.17

NOITE


O rodado dos carros na rua produz agora um ruído abafado, a evidenciar a lâmina de água que se interpõe entre o asfalto e a borracha. De o ouvir, adivinhamos os salpicos que vão saltando das rodas. Se alguém passar na berma dos passeios, talvez os sinta nos pés, no fato, e se afaste a evitar o incómodo. A luz dos faróis acende a poalha de chuva que vai caindo, oblíqua, mansamente. Os habitantes dos carros entrarão em casa desejosos de conforto, de lume, de comida cheirosa. Calçam chinelos, esfregam as mãos e dizem, até que enfim a chuva. São felizes os humanos que neste momento imagino. Tem de haver gente feliz para que as histórias não morram.

Licínia Quitério

13.9.17

OS OLHOS DE AURA


6.8.17

MISTER BROWNE

Por razões profissionais, conheci em tempos um americano típico,  Mister Browne, húngaro de nascimento, a viver em Los Angeles, um homenzarrão dos seus sessenta anos, de grandes bigodes grisalhos, que me aparecia de lencinho colorido ao pescoço e não raro com um chapelão de cow-boy. Tratava-me por Maria, eu sempre lhe dizia que não era e ele, imperturbável, continuava, Yes, Maria, tal como tratava todas as jovens portuguesas que, como eu, eram empregadas e tinham patrão. Visitava a empresa duas vezes por ano, para inspeccionar o fabrico das cadeiras que ali se fabricavam, em exclusividade para ele, segundo os seus próprios desenhos e exigências. Ao longo dos anos, fui-me habituando às visitas de trabalho de Mister Browne, que, nos intervalos das infindáveis reuniões, ficava a conversar comigo da sua vida familiar, nomeadamente de um dos filhos que andava quase sempre bêbado e que de trabalhar não gostava, o que trazia Mister Browne apreensivo com o fígado e o futuro do descendente. Invariavelmente abria a carteira e mostrava-me as fotos mais recentes da família, da casa, e ultimamente da piscina que dava um trabalhão a manter limpa, segundo métodos que me explicava. 
Numa dessas conversatas, preparei atalhos para lhe perguntar o que pensava de Hiroshima. Mister Brown retorceu as pontas do bigode, disse ahm, ahm, como dizem sempre os americanos a iniciar as frases, e, perante o meu olhar a filar a resposta, pausadamente, muito pausadamente, ahm, ahm, Maria, Truman fez o que tinha de ser feito, para evitar muito mais mortes. Assim, sem um lamento. Percebeu que eu não estava confortável. Disse, yes Maria, awful, sure Maria, war is awful. 
Passaram 72 anos sobre um dos maiores crimes da humanidade e todos os anos por esta altura recordo Mister Browne, a água límpida da sua piscina, o seu pragmatismo a falar de Hiroshima. 

Licínia Quitério

foto da net

1.8.17

ARQUITECTURA


Gosto quando a arquitectura nos diz de encontros e desencontros, de gostos, funções, testemunhos de muitas e variadas ordens de sucessivos mandantes, e nos deixa perplexos na procura de um fio que nos conduza e nos conte histórias de destruições, de cataclismos, de faustos e misérias e básicas utilidades. A segurar a história estão as pedras, as dos tempos muito antigos, as de hoje, e a juntá-las a cal, a cobri-las a tinta. Da gruta à pirâmide quanto caminho andado, quanto deserto nascido. Do palácio à choupana, quantos amores vividos, quanta fome, quanta sede de mar.  De tudo isto me alimento quando inauguro um sítio escuso, algures, na torreira da tarde, onde ninguém se demora, que ninguém guarda na memória.  

Licínia Quitério

22.6.17

O MEU PAI


Permitam-me que lembre hoje aqui o meu Pai que foi bombeiro voluntário durante longas décadas. Vivi a infância e adolescência a saber de incêndios e desastres, a perceber os toques da sirene que alertavam a população, a dar conta das saídas rápidas, muitíssimo rápidas, do homem lá de casa, a qualquer hora do dia ou da noite, a saber da aflição da minha Mãe a contar as horas até ele finalmente voltar, por vezes com a roupa e o calçado chamuscados. Tinha um imenso orgulho na instituição a que se dedicava, de alma e coração. Hoje ainda sinto, com particular sobressalto, as notícias que nos chegam sobre os incêndios, como se em cada soldado da paz se continuasse a generosidade e coragem do meu Pai.

Disse.

Licínia Quitério

3.6.17

A VELHA VIZINHA


Tocou à campainha. Vinha de robe azul claro, chinelos de tiras, os braços apoiados em canadianas, e tremia e dizia, desculpe, desculpe, eu estou muito aflita, se a senhora me fizer o favor de me ajudar, o telemóvel, não percebo de telemóveis, quero telefonar ao meu filho, ele ainda não apareceu hoje, estou muito aflita, não consigo ligar-lhe, aparece um cadeado, eu não percebo nada destas coisas, se a senhora puder. O meu marido, o meu marido desapareceu está maluco de todo, tem Alzheimer, saiu e ainda não voltou, deixou a casa toda por arrumar, o lixo espalhado e eu nesta desgraça é que tive de juntar tudo, ai se a senhora puder.
Mora ali mesmo em frente há relativamente pouco tempo, nunca tínhamos falado, mas ela achou que eu a podia ajudar, tinha-me visto entrar em casa.
Pronto, o cadeado já desapareceu, quer ligar, quer que eu ligue, como se chama o seu filho, não, esse nome não vem na lista, vem uma R. Sim, pode ser, é a minha nora, não gosto dela, ela é muito má para mim, mas ligue a senhora, faça-me mais esse favor.
Falou com a R., sem animosidade aparente, falou, falou, despediu-se. Já estava mais sossegada, ai se não fosse a senhora, que deus lhe pague, ai.
Ajudei-a a levantar-se do cadeirão que ela achou muito maciozinho, atravessei a rua com ela, uma eternidade, felizmente não passou nenhum carro, não conseguiu abrir a porta com a chave que trazia pendurada ao pescoço, os dedos não têm força, muito obrigada, deus lhe pague.

Fez-me muita pena. Ela já deve ter muita idade, está aleijada numa anca, tem o marido “maluco”, tomara que ele não volte, disse, não me serve para nada.
Tinha um cadeado no telemóvel, os pés muito inchados,  e uma grande raiva pela vida, a vizinha que hoje me tocou à porta.

Licínia Quitério

30.5.17

A MULHER DOS SÁBADOS




Aparece aos Sábados, o dia da folga, presumo, de trabalho precário, de salário pequenino. Isto a avaliar pela qualidade da vestimenta, dos sapatos, pelo saco dos pertences. Tudo nela é sinal de escassez de meios, de solidão de fim de semana.
Do saco vão saindo outros sacos, um deles com pedaços de pão que ela vai mordiscando. Do outro, espreitam fios de lãs de várias cores com que compõe, em gestos hábeis, flores de crochet. Imagino que daqui a muitas flores aparecerá uma manta a cobrir as zonas puídas do sofá gasto de corpos que uma patroa lhe deu.
Não se demora na renda, foi só o tempo de acalmar a excitação do telefonema infinito que fez com o Carlos, penso que é sempre para o Carlos que faz telefonemas infinitos, em discurso contínuo, apressado, a voz, de vez em quando, em falsete, a marcar alguma indignação, alguma decepção. “Ele” é o objecto do discurso, “ele é assim, ele é assado, ele disse, ele não disse”, e o Carlos só pode estar mudo, que ela não lhe deixa espaço para intervir. Será um Carlos que ouve o que ela tem urgência em dizer sem perder o fôlego, os olhos a varrerem a sala, a meia altura, sem se fixarem em nada, em ninguém. Na mesa, um copo de água que vai beberricando , a amaciar as sílabas, a torrente de sílabas. Diz muitas vezes “não posso”, “não posso”, “estás a ver”, “estás a ver”, “certo”, “certo”, tudo com a mesma entoação, ou melhor, sem entoação alguma.
A dada altura, faz uma pausa, o Carlos deve ter dado sinal de presença, ela faz um arremedo de sorriso, e eu oiço, “pois, o festival, é isso, que bom, Portugal ganhou, chau Carlos”. Mais não disse. Desligou,  arrumou a lã, a agulha, fechou o saco com os pedaços de pão, bebeu um último golo de água, foi pôr o copo no balcão. Disse “até logo”, saiu em passo apressado, no mesmo ritmo com que faz correr as palavras que o Carlos ouve, ou não ouve. Ninguém atura aquela mulher dos Sábados. Só o Carlos. 

Licínia Quitério

1.5.17

PRAIA


Por terra ou por mar, é à praia que chegamos.

Licínia Quitério

27.4.17

UM CASAL TRANQUILO

Chegaram e sentaram-se, frente a frente, nà mesa do café. Os filhos estão na escola, ele teve folga do serviço, ela, por agora, está desempregada. O dia está bonito, ela até estreou os óculos escuros que parecem Ray-Ban.
O telemóvel dele a tocar, ele a atender “Estou sim, diz coisas, pá”. Ela tira o seu aparelho do saco e, de dedo indicador em riste, dá início à tarefa de ver os e-mails, de correr o Facebook, um like aqui, outro ali, e outro, e outro, nos posts de muitos dos seiscentos e tal amigos. A conversa dele continua, continua. Terminada a distribuição dos likes, ela levanta-se e vai ao balcão pagar. Volta, ele levanta-se, o telemóvel no ouvido, saem os dois. Vejo-os afastarem-se, lado a lado, altos, elegantes. 
Não trocaram uma palavra, não se tocaram, não se olharam nos olhos. Um casal tranquilo, sem espaço para altercações, zangas. Quando for a partilha da guarda dos filhos, terão ocasião de discutir, acaloradamente, mesmo em frente do juiz, os filhos são dela, os filhos são dele, ai. Enfim, a bem ou a mal tudo se há-de resolver.
Surpresa foi a mensagem “Hoje dou cabo dela.” que ele gravou (antes daquilo) e pôs no You-Tube, com música de uma marcha militar em fundo, demasiado alto, mesmo assim a deixar perceber a voz rouca de raiva.
Nesse mesmo dia (antes daquilo), ela desabafou no FB, “Se não fossem os meus ricos filhos, eu sabia o que fazer.”. Teve muitos comentários e bateu o seu record pessoal de likes, mais de cem.

Os miúdos, nos “tempos livres”, desenhavam o pai e a mãe. Tinham ambos uma das mãos na orelha a segurar uma coisa em forma de borrão. O da mãe era cor-de-rosa, o do pai era azul. 

Licínia Quitério

23.4.17

O LIVRO



Hoje é o Dia do Livro. Do Livro de papel, com capa, com autor declarado, com páginas numeradas, com princípio e fim. O Livro como o conhecemos, nas nossas casas, nas nossas escolas, nas nossas mãos. Não é possível ignorá-lo. Mesmo que nunca tivéssemos lido um Livro ele teria chegado até nós. Ele contém o pensamento do autor posto em letras e palavras arrumadinhas. Palavras e letras que dele saem para o leitor, para os leitores, que as tomam, as adoptam, as transformam, as recriam, as amam ou detestam. E as passam a outros, pela voz, pela conversa, pelo acto, pela vida. Este Livro que hoje se celebra poderá deixar de se construir, sair de cena, ficar nos museus, nas caves, nas lembranças. Mas o outro, o Livro que existe em cada ser humano, não pára de ser escrito, de ser inventado, acrescentado, reconstruído, noutras vozes, noutros lugares reais ou virtuais, noutros tempos em que talvez já nem se chame Livro. O Livro há-de ser sempre um lugar onde o homem se pensa, se excede, se oferece, vive.

Licínia Quitério

21.4.17

DONA TELA

Falar da Dona Tela é um exercício arriscado, um solilóquio, uma expiação. Encontrei um pequeno texto que escrevi há um bom par de anos, em resposta a alguém que perguntou quem ela era, e que aqui transcrevo.
"A Dona Tela não sou eu, se bem que por vezes gostasse de ser. Penso que a conheço, ingénua mas não burra, desbocada que baste, deslumbrada por futilidades, de coração de manteiga, presa não tão fácil como parece, mas com perigosas fraquezas, quarentona, sedutora ainda, suburbana e pelintra, muito pelintra. Passo muito tempo sem saber dela. Depois aparece, sempre atenta ao mundo, com a sua linguagem muito viva e heterodoxa."
Ainda hoje ela se me apresenta, agora com as unhas pintadas de azul, as leggings a comprimir algumas molezas, um ombro bem destapado, a jeitosa lá do bairro. Continua a ver telenovelas, sonha com um highphone de último modelo e tem a foto do CR7 ao lado da do dito-cujo, o tal que vende aspiradores e lhe comprou um pedacinho da alma. Só um pedacinho, que a Dona Tela é uma mulher prá-frentex que chora baixinho e ri muito alto, escandalosamente. Confessou-me que simpatiza com a geringonça, mas não me diz qual o elemento do trio ela prefere.

Se eu sou a Dona Tela? Toda a gente sabe que não.

Licínia Quitério

5.4.17

PRIMAVERA



Sabemos que a Primavera é menina de caprichos, instável, imprevisível, de humores vários, temperaturas várias, de alto a baixo da escala, de roupas frescas e de abafos, de neve na serra, de chuva de manhã, de sol à tarde, de arco-íris e de nevoeiros. Também de alergias e gripes tardias, de neuras e depressões, de súbitas paixões, de súbitas separações, de desejos inconsequentes. Dou por mim a perguntar como será viver num país de outros meridianos, de outros paralelos, sem Primavera, sem Outono, sem estas estações de classe média, responsáveis, assim dizemos, por toda a nossa inquietude, pelos espirros e pelos desamores, pela vida mediana e mesmo assim esperançosa que nos faz acreditar em florações perenes, como se as árvores as pudessem suportar.

Licínia Quitério

31.3.17

AGITAÇÕES

Agita as mãos e, a segui-las, os braços. Roda os ombros e com eles o tronco, a aproximar-se e a afastar-se das costas da cadeira. A cabeça também roda, roda, para um lado, para o outro. Cruza os dedos, não os prende, em leque os faz abrir e fechar, abrir e fechar, a tocarem um teclado que só a mulher saberá se existe. Os pés balançam, a um palmo do chão, batem um contra o outro, para logo poisarem e logo saltarem, alternadamente. Uma das mãos no queixo, depois no nariz, na orelha, no cabelo, a afagar, a apertar, a puxar, a ajeitar. Cruza as pernas, descruza-as, a direita sobre a esquerda, a esquerda sobre a direita. A mulher que observo fala, fala em contínuo, e a voz dela também se agita, ora em murmúrio quase inaudível, ora em estridência breve, ora num fraseado monocórdico, acometido aqui e ali por uma espécie de soluço. Interrogo-me. Como será esta mulher quando dorme? E quando faz amor? E quando está sozinha, sem ninguém que a oiça, perdida no seu corpo desamparado? Volto a observá-la. Quando ri tapa a boca com a mão, a reprimir o riso, sem reprimir a dança do corpo. Frenética, neurótica, hiperactiva, que classificação dar a esta mulher, em que escala, com que justeza? Qual o seu grau de felicidade, a tal que não se pode medir? É uma mulher, é uma mulher que fala acompanhada do ritmo alucinado do seu corpo. É uma mulher, uma mulher que eu observo e desconheço.

Licínia Quitério

29.3.17

A MULHER


A mulher diz, sente-se, coma, aqui come-se o que vem para a mesa. A mulher não pergunta se queremos mais, mas a gente percebe que podemos servir-nos as vezes que quisermos. A mulher não diz obrigada, mas a gente sabe que gosta de mimos. A mulher ameaça, olha que levas, mas a mão suspende o gesto, a saber-se obedecida. A mulher tem opinião, declara-a, defende-a, com a fala grossa e o corpo adiantado. A mulher gosta de ser ouvida a desfiar a vida, o rosário de dores que se orgulha de ter vencido, com muito esforço, sem nunca ter deixado de ser brava, digna. Ela diz “séria” e não “digna”, com toda a razão da palavra. É impiedosa para com quem a fez conhecer a miséria, a dela e a dos outros. Fala da ditadura e explica-a como ninguém, porque a sentiu, a entendeu, a adivinhou. Sente-se vingada do silêncio que lhe impuseram, do medo da prisão que levou os pobres da aldeia, coitados, o que sofreram, malvada gente. A mulher conheceu outros mundos e neles sofreu e aprendeu o que escola alguma pode ensinar. Sente-se vingada da pobreza porque hoje tem o conforto que a labuta lhe deu, tão duras as tarefas que lhe rebentaram o corpo, a fazê-la gemer baixinho.
Oiço-a com enlevo, com curiosidade, até que ela põe termo à conversa, levanta-se, olha em volta e diz, para onde foram todos, vou ver deles, assim à maneira de recado para mim, por hoje já ouviste o que eu quis contar, agora chega. É ela quem decide quando começa e acaba a conversa.

Quem quiser saber o que foi o fascismo em Portugal tem de encontrar mulheres como esta, de as ouvir, com atenção, com a humildade de quem tem muito para aprender. Aconteceu-me conhecer esta que tanto me ensina.

Licínia Quitério

17.3.17

HISTÓRIAS

Há dias assim. A gente acorda para continuar o calendário e as ideias desarrumam-se em frases soltas, palavras soltas, aparentemente sem nexo, que raio, são restos de ontem, de um outro ontem mais antigo. Um desenho vago no vidro da janela, um passante que sobe a rua, não o conheço, cada vez cada vez há mais desconhecidos, cada vez há mais gente a passar, ou eu deixei de os saber contar, o homem coxeia, dantes ninguém coxeava, como tudo mudou. 
Mudou muito aquela mulher que ontem se sentou à minha mesa, pediu, posso, e já pendurava a mala nas costas da cadeira que arrastava, não está a conhecer-me, não, não estou a ver, eu nunca reconheço alguém que vem do fundo do tempo, aquela mulher velha que eu não sei quem é, vem de dentro da mulher menina que, essa sim, eu conheci, dantes eu conhecia muita gente, sabia-lhes os nomes, as moradas, hoje sei lá quem são, onde moram, por que será que se lembram de mim. Ela continua, eu sou a F, sou irmã, sou filha, não, mãe não sou, a outra é que é. Quem será ao certo e o que quererá de mim esta mulher ali na minha frente, os olhos muito abertos por detrás das lentes, os olhos dos velhos nem sempre encolhem, por vezes ficam assim, como os dela, desmesuradamente grandes. Já disse quem é, ainda não percebeu que eu não sei ao certo quem é, começa a desenrolar o novelo da história que me quer contar, é para isso que ali está. 
Sempre aparece alguém, como ontem, que me quer contar uma história, a sua história, a história que não é a sua mas que quer mostrar, uma pessoa sem uma história digna de ser contada não chega a ser uma pessoa que valha a pena ser ouvida, mesmo que seja em faz de conta, como eu faço, a espreitar as entrelinhas, no que não diz mas eu oiço, no que desdiz e eu não oiço. São assim as pessoas que me contam histórias, não, não mentem, inventam-se, que bem precisam de ser outras, nem que seja por dentro, muito por dentro, como se dessem lustro à carcaça. Histórias que se enrolam no meu despertar e me dão frases soltas, palavras soltas, aparentemente sem nexo, como as de hoje.

Licinia Quitério

11.2.17

A MIÚDA


A miúda passava todos os dias, à mesma hora, defronte do café dos velhos que a seguiam com olhos saudosos de juventude. A miúda não reparava neles, ia sempre apressada, segura de querer chegar onde a esperavam. Foi assim até ao dia em que a atenção dela foi tocada por um baque surdo e uma vozearia de aflição. Virou-se, deu uns passos atrás, perguntou, precisa de ajuda. Ajude-me a levantar, menina, estes velhos não conseguem. Ela sorriu, abraçou-o pelas costas e ergueu-o. Estava pálido, ela só se foi embora quando o viu sentado e a beber um copo de água. Os outros velhos diziam frases desgarradas, que coisa, tu vê lá, estás bem, ó pá atiraste-te para o chão para a miúda te agarrar, cala essa boca.

Entre dois golos, ele só disse, baixinho, para ela não ouvir, é tão bonita
.
Licínia Quitério

5.2.17

A ROSA


Por vezes, na tarde acontece o vermelho da rosa.

Licínia Quitério

4.2.17

VENTO


"De vez em quando todos precisamos de algum vento nas costas." - no filme I Daniel Blake, de Ken Loach.

15.1.17

JOANETES


A Dona Cândida tinha joanetes. Era para onde eu mais olhava quando ela vinha fazer a sua visita anual. A Dona Cândida passava o Verão em casa da minha avó que lhe cobrava uma quantia simbólica pelo alojamento e que a Dona Cândida fazia questão de pagar, coitada da Dona Adelina, era o que mais faltava, bem basta o favor, é só para a água e a para a luz. A Dona Cândida era solteira, solteirona, diga-se, que já ia avançada na idade, uma velha muito velha, no meu entender de criança .Vivia para os sobrinhos que eram as pessoas mais inteligentes, mais bonitas, mais bem educadas deste mundo, filhos da sua irmã e do seu cunhado, só poderiam ter saído assim, umas jóias. Na minha família e em famílias amigas, os sobrinhos da Dona Cândida eram motivo de muitas citações e boas risotas. Estou a vê-la, com o lenço de seda amarrado debaixo do queixo, a cobrir o cabelo ralo que à noite prendia com uma rede, segundo a minha avó contava. Voltando aos joanetes, que eu até então nunca tinha visto, aquelas redondezas a saírem por entre as tiras dos sapatos, de presilha em volta do tornozelo e salto de pião, prendiam-me a atenção e cheguei a pensar que atrás da redondeza um dia apareceria o dedo todo, coitado dele, forçado à contenção pelas tiras de couro beije. Na família e nos amigos, comentavam-se os exageros da Dona Cândida, não só no que às virtudes dos sobrinhos diziam respeito, mas também às suas histórias de pretendentes rejeitados que ninguém conhecera, entre os quais ela contava o príncipe Dom Afonso que um dia, passando de carruagem no Rossio, lhe tinha quase atirado com os cavalos para cima, só para lhe chamar a atenção. A Dona Cândida devia ser muito velha mesmo, visto que se referia ao tempo dos reis, sua majestade para cá, sua alteza real para lá, num embevecimento que lhe punha um sorriso desajeitado no rosto a que a minha mãe, irónica, chamava “cara de grão-de-bico”, mas isso eu não podia repetir, nem pensar. Guardo o cheiro do pó de arroz da Dona Cândida, um cheiro doce e velho, como ela, menina para sempre, a efabular histórias dos seus namorados sonhados, tia extremosa dos queridos sobrinhos, que nos visitava nos meses de Verão, chegada da grande cidade com que eu começava a sonhar.

Licínia Quitério

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