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15.7.19

OS OLHOS DE AURA


Acordou, como sempre, antes dele, hoje mais cedo até do que o costume, foi a ventania a fazer batucar a janela da marquise, mal fechada, o sono já era leve, de sonhos em novelo, aflitos, ainda bem que acordou antes que viesse aquele peso no peito, que coisa estranha, era como se alguém lhe pusesse um pé em cima, com a força do corpo todo, mais força, e ela sem se poder mexer, um dia contou-lhe o sonho recorrente, tu sonhas muito, até sonhas acordada, deves andar a ver muitos filmes, passa-me mas é a manteiga.
Está frio e faz vento, lembrou-se de pôr aquele gorro vermelho, gostou de se ver no espelho, puxou uns fios de cabelo para a testa, um assomo de franja, a meia idade a fazer-se sentir, uns quilos mais, os vincos aos cantos da boca, mas de resto ainda é uma mulher atraente, os grandes olhos tristes dão-lhe um não sei quê de artista de cinema, disse-lhe o Américo, e logo a desculpar-se pelo atrevimento, não me interprete mal, com todo o respeito, delicado o chefe, um pouco fora de moda, seria por isso que o marido lhe chamava larilas, ninguém sabe o que um homem é por dentro, lembrou-se da mãe, mas já está na rua, o ar frio na cara, os olhos a encherem-se de lágrimas, desta vez é do frio, sorri ao pensar que também há lágrimas boas, de mulher viva, a abrir o dia.
Licínia Quitério, em "Os Olhos de Aura", 2017

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