No andar mais baixo do prédio, a janela aberta, o começo duma tarde quente, um braço a descansar no parapeito, aconchegado por pequena almofada, à medida daquele braço sem vida, a mão fechada, o polegar escondido. A procurar a janela que fica recuada e mais baixa do que o passeio onde caminho, rodo um pouco a cabeça e dou com o rosto daquele braço inerte, um rosto de olhos parados, muito abertos, um esgar no lugar da boca, o tufo de cabelos ondulados a descair sobre as têmporas. Estremeço quando percebo que conheci aquele resto de homem noutro homem inteiro, enérgico, de fala grossa, a dizer-me olá, a tratar-me pelo pequeno nome de infância. Porventura pensara que já tivesse morrido, há muito deixara de o ver, a gente esquece-se dos vivos se não continuam a passar por nós, ao menos de longe em longe, a lembrar, ainda aqui estou, tu também, se calhar sempre estaremos, quem sabe a morte não existe mesmo.
Abrando o passo e não desvio o olhar da janela, do braço do
homem, do olhar vazio do homem que era o mesmo, afinal era ele, ainda quase
vivo, podia ter morrido que eu nem daria por isso, mas vê-lo assim em esboço,
em sombra, em arremedo, dá-me uma tristeza exagerada, sei lá eu porque
entristeço assim, às vezes, era só meu conhecido, que raio, a idade torna-nos
piegas. Por detrás dele, o vulto sombreado da mulher, a mulher dele que também
conheci, não sei como se chama, o nome dele sei, é um nome bonito, chama-se
Amável. Ela lá está, tem na mão um prato, deve ser para lhe dar de comer, uma
mulher que dá de comer ao seu homem, ao que resta do seu homem, agora só Amável
de nome, que a doença decerto o tornou irascível, a balbuciar palavrões que
nunca usava dantes, a ameaçar bater-lhe com o braço que não morreu ainda. Há
horas, muitas horas, em que ela chora, choraminga, tem tanta pena dele, tem
tanta pena dela. Não pode ir-se abaixo, é seu ofício tratá-lo, alimentá-lo,
vigiá-lo, suportar-lhe os acessos de fúria, aguentar, aguentar, afastar frases
terríveis que se lhe atravessam na cabeça, em momentos mais negros, morre,
porque não morres, eu não aguento mais. Já descobriu como apagar as palavras
que nunca dirá, por mais que elas se apresentem. Vai ao café mais próximo, bebe
um café ao balcão, responde à empregada, está melhorzinho, graças a Deus.
Regressa a casa, devagar, a prolongar o tempo, a alongar o espaço, o que havia
de lhes acontecer.
Licínia Quitério
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