Quem
havia de dizer que o senhor Leocádio também existe fora do seu sítio de pacotes,
latas, frascos, caixas, todos de variados feitios, tamanhos, cores, a cada um o
seu rótulo, o seu logótipo, o seu apelo mudo ao cliente, ao potencial cliente,
ao curioso visitante, na oferta das bolachas, dos cogumelos, do atum, da
margarina, do fiambre. Há que referir ainda os produtos frescos, e os secos, avulsos
nas caixas, nas tulhas, para o cliente, o potencial cliente, avaliar a cor, a
frescura, o cheiro, apalpa aqui, apalpa acolá, num desdém, num franzir de
nariz, num ó senhor Leocádio estas laranjas são boas, sim, minha senhora, muito
docinhas, e, a senhora não pergunta, mas as clementinas também. É ali que o senhor
Leocádio existe, de manhã à noite, por detrás do balcãozinho, com o seu pulover
cinzento ou beige, a sua aliança de casamento, grossita, a
rebrilhar na mão sapuda, aguardando os clientes, tão poucos que até dá pena, a
sua loja é só para as faltas, hoje toda a gente vai aos super, hiper, mega mercados,
sabe ele mas não o diz, que não é homem de lamentos, faz os dias como deus
manda, melhores dias virão, sempre a socorrer-se de provérbios, de frases mais
que feitas, atrás de tempo tempo vem, enquanto há vida há esperança, vamos
dando o passo conforme a perna, para a frente é que é o caminho.
Pois
hoje encontrei o senhor Leocádio na rua, a uns bons metros de distância da
loja, olá minha senhora, eu nem queria acreditar na sobrevivência de um homem
fora do seu sítio, viva senhor Leocádio, não o fazia por aqui, pois minha
senhora às vezes também saio, apanhar um bocado de sol faz bem, pois claro, até
logo, e lá se foi o senhor Leocádio, com o seu pulover cinzento, a sua aliança
a rebrilhar desta vez ao sol da rua, e eu feita parva a olhá-lo, meio incrédula
da existência dum homem fora do seu sítio de esperar quem já não vem, a
esperança é a última a morrer, não se pode ter tudo, deus dá o frio conforme a
roupa, já lá diziam os antigos.
Diria
que o senhor Leocádio é a conformação em pessoa, não fossem aqueles suspiros
cautelosos que o atravessam, enquanto faz a conta e olha a porta por onde cada
dia entram menos clientes. Um dia atrás do outro, não é, senhor Leocádio?
Licínia Quitério
Sem comentários:
Enviar um comentário