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5.11.24

 2º. FESTIVAL LITERÁRIO DE MAFRA

 

“AQUI também há quem escreva”. Eis o tema desta mesa com três autores de alguma forma relacionados com a vila de Mafra.

Foi o advérbio AQUI que me pôs a reflectir na ideia de lugar geográfico como alibi para quem escreve, qual embalo e respiro, mais ou menos insidioso, mais ou menos perceptível. Este pensamento, aliás, livrou-me do embaraço de não conseguir alinhar algumas palavras a propósito, neste encontro para que fui generosamente convidada.

E foi então que, num refrescar de memórias, me recordei que no meu livro “Os Olhos de Aura”, fiz de Alba, terra mítica, um actor que percorre toda a novela, sublinhando a acção e convocando os personagens.

Da terra, Alba, fala assim o narrador no excerto que passo a ler:

Alba assiste, impávida, aos tormentos dos vivos, à usura do tempo, às derrocadas e às obras, infindáveis obras de construção dos ossos, reconstrução da pele, por necessidade ou por fastio, por sede de mudança que o estaticismo de Alba não estimula. Se Alba se chamou a terra, razão houve ou não. Talvez um som que nasceu numa boca ao madrugar, depois caminhou por outras bocas, e foi mudando, encurtando, ao jeito de quem chegou, e foi nome até ser o vento na chaminé, o choro de criança acabada de nascer. De muitos ventos, muitos nascimentos, Alba foi crescendo, alastrando, como animal deitado a olhar o mar, lá longe, muito longe, só o desenho de um barco no horizonte, só a brisa da tarde que põe na boca um ligeiro sabor a sal. Dos prados se fizeram casas e as casas traçaram ruas, e os rebanhos foram devorados e o lugar deles passou a chamar-se praça ou largo ou terreiro, se for maior e mais antigo. Alba é rósea ao despertar, dourada ao meio do dia, de noite agiganta-se e tudo se dissolve em seu negrume.

Desta terra, Aura, a Mulher, não sabe falar, por isso a inventa, desgraçada e poética, tal qual a insânia e o vento leste."

Termina aqui o excerto do livro.

Claro que Alba não é Mafra, pesem embora certas alusões quase identitárias, mas a ficção é afinal isso mesmo: o poder de tudo enformar, tudo transformar.

Não posso deixar de referir o livro que pôs lá dentro este Convento, à sombra do qual nasci e cresci. Li o Memorial com encantamento, com pressa, e cedo corri ao encontro do autor que assim falava da minha casa grande para a levar mundo fora. Disse-lhe:

“Gostei que me tivesse ensinado a ver Mafra sem o Convento. Agora olho para o monte antes dele e consigo pensar-me doutro modo.”

Saramago ouviu-me, fez um sorriso de boca fininha, fixou-me por breves segundos e deu-me um autógrafo: “À Licínia que é de Mafra”.

Aí está. Mafra é este lugar, esta pedra-mãe, este AQUI aonde voltei para mais viver e escrever, quando os tais ventos sopram de feição. Estou certa de que Alba não teria os traços que lhe dei se eu não fosse de um lugar real que, sem me dar conta, se impôs aos olhos de Aura, a Mulher.

Permito-me afirmar que, se bem procurasse, também haveria de encontrar poemas meus em que Mafra, ou Alba, ou a Aldeia da Fonte Branca, ou outros lugares reais ou imaginados, me segredaram palavras e sentidos que nunca saberei como ali vieram parar. Mas isso são os estranhos, insondáveis, maravilhosos caminhos da Poesia.

AQUI também se escreve, e é isso que importa.

 

Licínia Quitério


Mafra, 3 de Novembro de 2024


 

7.9.24

OS SÓTÃOS

 

Não conhecemos tudo o que guardam os nossos próprios sótãos.

Sabemos de madeiras que revelam o cheiro das árvores-mães.  Pensamos sândalo, ou cânfora ou pau-santo ou outra palavra que aprendemos sem alguma vez termos sabido das florestas do outro lado do mundo.

Nos sótãos há poeiras várias que invadem os espaços, mesmo os que medeiam gerações. Outras ainda não concluiram a queda e adejam contra a luz das frinchas do telhado.

Nunca chegamos a saber o que se guarda nas caixas mais ao fundo dos esconsos. Desistimos de explorar esses lugares sombrios para melhor inventarmos restos de amores impossíveis e histórias de heranças ferozmente repartidas.

Os sótãos guardam os nossos segredos nunca revelados, em escaninhos inacessíveis a mãos humanas, ao abrigo da mais insensata espionagem. Passado muito tempo, já nós não recordamos o segredo que foi nosso e mora dentro da caixa soterrada em mantos sucessivos de poeira lá onde não chega a luz coada pelas frinchas do telhado.

Falar de sótãos não será o mesmo que contar passados, embora a poeira seja igual, permanente, persistente.


Licínia Quitério


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