Hei-de lá ir. Hei-de lá ir. Aconchegava a redondeza da caixa
na palma da mão. Com a outra abria-a e fechava-a, uma vez, outra vez. Mirava-se
no espelhinho que era o interior da tampa. Cheirava delicadamente o pó cor de
rosa desmaiada que se escondia sob a rede, sob a almofadinha macia, macia, como
outra não sabia. Fechada a caixa, o estalido metálico do fecho, perdia-se a
olhar a estampa do que, já aprendera nos livros, ser o Sacré Coeur, as suas
torres, os cavalinhos com cavaleiros, as colunas, os degraus. Trouxera-lha o
tio que viajava, no seu trabalho duro de conduzir pessoas que viajavam em
descanso mole. Era tão doce o tio de trabalho duro, um gigante com lágrimas
quando revia os sobrinhos. Ela não parava de mirar, de abrir, de fechar, a
caixinha com o Sacré Coeur na tampa. Esqueceu-se de passar a esponja pelo pó e
de a passar no rosto, como faziam as meninas do seu tempo, chegada a idade de se
prepararem para escolher e serem escolhidas para o tal casamento de que falavam
as mães, as avós, as tias, as amigas das mães, das avós, das tias. Apaixonada
esteve a menina pela caixa, não bem pela caixa, pela ideia de viagem que a
caixa lhe trazia. Hei-de lá ir. Hei-de lá ir. E o pó continuava intacto debaixo
da rede, debaixo da esponja. Paixão é paixão e a menina não parou até ao dia em
que anunciou: Vou lá. Parto amanhã. Foi e subiu os degraus, olhou os cavalos,
os cavaleiros, as torres. A caixinha ficou, a menina veio e voltou e voltou e
viu muito mais do que as torres e os degraus. Viu cidades e mares e florestas e
gente, muita gente. A caixinha morou por longos anos numa vitrine, junto das
coisas pequenas com histórias grandes, se as quisermos contar. A menina cresceu,
amou, envelheceu e mais uma vez voltou à cidade da tampa da caixinha, com o pó
intacto, com um cheiro a coisas antigas que um dia foram belas. Foi desta vez
que, num relance, olhou a vitrine e disse: Hás-de lá ir. Hás-de lá ir. Foi. A
caixa fez a sua viagem de regresso. A menina, cada vez mais velha, sentiu que conseguira
terminar mais um capítulo da sua própria
viagem.
Licínia Quitério
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