Era no Inverno que ela floria. No Inverno, quando o frio
empurrava as mulheres para dentro das
casas, para dentro das vidas, a juntarem pedacinhos de lã, pedacinhos de
lembranças. No tempo em que o vento se esgueirava pelas frinchas das portas,
pelo buraco da chaminé, e a chuva alagava o pátio, alagava as meias dos
caminhantes. No tempo em que a chama do candeeiro se apagava quando a porta do
quintal se escancarava. O tempo das grandes noites, dos dias escuros e das
frieiras a magoarem os dedos. Era esse o tempo em que a menina vivia de lume,
vivia no lume, era o lume. No banquinho de madeira, esperava pelos carvões que haveriam
de se deitar na braseira de cobre. Vermelhos os do centro, negros os que em
redor se amontoavam, aguardando a sua vez de serem incêndio. Ali ficava a
menina, o queixo nas mãozitas, os cotovelos nos joelhos, em encaixe perfeito, equilíbrio e conforto. Era o seu tempo de
florir, os olhitos presos no mundo ardente dos carvões. Na cabecita nasciam histórias da cidade de
lume, com as suas ruas povoadas de pequeninos seres de lume que se moviam
atarefados, num sem-fim de subidas, descidas, avanços, recuos, como quem vive,
mesmo sem lume. Ali ficava, presa nas histórias dos seus homenzinhos de lume,
ou mulherzinhas, que eram iguais, de tanta luz, de tanto brilho. Quando os
olhos se cansavam de serem flores de
lume, o brilho da cidade esmorecia, acalmava, abrandava, desmaiava, e os olhos
fechavam-se, docemente, como se fecham as flores. Amanhã voltaria, o queixo nas
mãozitas, os carvões acesos, os homenzinhos na cidade, numa azáfama, as
histórias a começarem na cabecita da menina da cidade de lume. Era assim, no
Inverno.
Licínia Quitério
foto da net |
1 comentário:
A sua escrita é deliciosa, Licínia. Ainda ontem, cá em casa, se falou no Disco Rígido.
Deixo um beijo
Lia
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