Era uma vez um homem que vivia fora dos muros da cidade. Se cometera algum crime, se pagava culpas de antepassados, ou se apenas se retirara por indiferença ou vergonha - não se sabe. Talvez um pouco de tudo isto, tão certo é que do belo e do feio, da verdade e da mentira, do que se confessa e do que se esconde, fazemos todos nós a nossa casual existência. Vivia o homem fora
Algumas vezes tentou entrar na cidade. Fê-lo não por um irreprimível desejo, nem mesmo por cansaço da situação, mas por mero instinto de mudança ou desconforto inconsciente. Escolheu sempre as portas erradas, se portas havia. E se lhe aconteceu julgar que entrara na cidade, talvez sim, mas era como se a par da cidade real houvesse imagens dela, inconsistentes como a sombra que nos olhos se tornava mais e mais densa. E quando essas imagens se desvaneciam, como o nevoeiro que das águas se desprende ao toque luminoso do sol, era o deserto que o rodeava, e ao longe brancos e altos, com árvores plantadas nas torres e jardins suspensos nas varandas, os muros da cidade brilhavam outra vez inacessíveis.
Da cidade vinham rumores de festa. Assim lho dizia, mais do que os sentidos, a imaginação. Rumores de vida seriam, pelo menos. Não essa morte solitária que é a contemplação obstinada da própriasombra. Não o desespero surdo da palavra definitiva que se escapa no momento em que seria, melhor que uma palavra, uma chave. E então o homem rodeava as longas
Porque o homem acreditava na predestinação. Estar fora da cidade (se disso tinha real consciência) era para ele uma situação acidental e provisória. Um dia, no dia exacto, nem antes nem depois, entraria na cidade. Melhor dizendo: entraria em qualquer parte, que a isto se resumia o seu esperar. Que a névoa da melancolia se tornasse noite, seria um mal necessário, mas também provisório, porque o dia predestinado traria uma explicação. Ou nem isso, sequer. Um fim, um simples fim. Uma abdicação já serviria.
O homem não sabia que as cidades que se rodeiam de muros (ainda que brancos e com árvores) não se tomam sem luta. Não sabia o homem que antes da batalha pela conquista da cidade outro combate teria de lutar consigo próprio. Ninguém sabe nada de si antes da acção em que tiver de empenhar-se todo. Não conhecemos a força do mar enquanto ele não se move. Não conhecemos o amor antes do amor.
Veio a batalha. Como nos poemas de Homero, os deuses entraram nela. Combateram a favor e contra, algumas vezes uns contra os outros. O homem que lutava para viver dentro das muralhas da cidade mesmo assim cruzou espada e palavras com os deuses que estavam do seu lado. Feriu e foi ferido. E a luta durou longos e longos dias, semanas, meses, sem tréguas nem repouso, ora junto às muralhas, ora tão longe delas que nem a cidade se via, nem se sabia bem já que prémio estaria no fim do combate. Foi outra forma de desespero.
Até que um dia o terreno de luta ficou livre e desimpedido, como um estuário onde as águas descansam. Sangrando, o homem e o deus que lhe ficara olharam de frente as portas, abertas de par em par. Havia um grande silêncio na cidade. Ainda amedrontado, o homem avançou. A seu lado, o deus. Entraram - e foi só depois que entraram que a cidade se tornou habitada.
Era uma vez um homem que vivia fora dos muros da cidade. E a cidade era ele próprio. Josephville, se lhe quisermos dar um nome.
José Saramago
1 comentário:
Um texto belíssimo, este!
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