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30.5.15

A PONTE


A preparar o melhor ângulo para a foto. A pensar na história da ponte, das casas, das pessoas.
Outrora, ali houvera casas e, nas casas, gente que abria as janelas e olhava para o céu, onde os únicos passantes eram aves, talvez os pardais da cidade, as andorinhas primaveris, as gaivotas que procuram terra quando a borrasca se avizinha. Muitas dessas casas ainda lá estão, a abrigar outra gente que, para ver o céu, precisa de esticar o pescoço, de dirigir os olhos bem para cima, não vão eles esbarrar na estrada que depois apareceu, suspensa em altas pernas, longa, longa, caminhando sobre a terra, sobre o rio, sobre a terra de novo. Os que a atravessam, lá no alto, muito alto, olham para baixo, para os telhados das casas, para as pessoas pequeninas, para os barcos no rio. Olham, como olham os pardais, as andorinhas, as gaivotas, como eles passageiros do céu.
Em tudo isto ela pensou, embora depois na foto apenas aparecessem uns telhados, janelas fechadas, e uma nesga da ponte onde rodava um autocarro, talvez com gente dentro, que nem para fora olhava.

Licínia Quitério

28.5.15

O ESPELHO


É antigo, o espelho, mais antigo do que eu. Ganhou uma moldura nova, como se fosse antiga. Um espelho maculado pelos muitos anos, pelas muitas imagens que produziu. Mirei-me nele quando pequena, insistentemente, obsessivamente, intrigada com a falsa simetria que fazia esquerda a minha mão direita, aproximando-me até ver crescer a condensação da minha respiração, em círculo de minúsculas gotículas, em redor da imagem da minha boca em beijo. Olhei-me hoje, de novo, no espelho que reganhou lugar de dignidade. As suas margens, de aristocrático biselado, reproduziram imagens múltiplas de pedaços de mim, uma fantasia virtual, eu, como Alice, do outro lado, o meu braço esquerdo como se fosse direito, afinal só eu mudei, o espelho firme nas suas convicções.

Licínia Quitério

26.5.15

A FOLHA


Uma onda de calor, inconveniente, queimou-lhe as margens. Ferida de morte, a folha, em minha mão. Reparei, agora mais atentamente, na sua suavíssima beleza. Da nervura central, irradia, em pena, um matiz de verdes, como se pincel ali se tivera demorado, em afagos de pintor, leves, leves, finos. Contemplo-a há dias, enquanto se enruga, lentamente, os bordos enrolando, denunciando o avesso arroxeado. Tão belo este render de vida, um rasto de luz, ainda, uma demorada dádiva.

Licínia Quitério

23.5.15

SERRA D'ARGA


A Serra d'Arga era um nome que rolava nas minhas memórias do nunca verdadeiramente visto. Um daqueles lugares que eu conhecia de um estranho conhecer, como muito me acontece. Um nome, um lugar, que, no dia em que nos é apresentado, em quadro vivo, nos faz dizer,  muito baixinho, "que bom voltar a ver-te". Foi assim  quando me levaram à Serra d'Arga. Fiquei ali uns instantes, num bem-estar desusado, a olhar as pedras, os verdes, aquele manto ondulante a subir, a subir, lá fora, cá dentro de mim. Devo ter pronunciado, devagar, várias vezes, "Serra d'Arga, Serra d'Arga, Serra d'Arga", num mantra acabado de nascer. 

Licínia Quitério

19.5.15

A BUGANVÍLIA


Todos os anos a minha buganvília, depois de intensa floração, definha, seca, reduz-se a troncos lenhosos e aparentemente inertes. Por dentro de mim, sempre corre um leve gemido, que não é choro, é um lamento seco pela perda esperada da planta que vive há muitos anos de raízes apertadas no maior vaso que consigo dar-lhe. Resiste a minha esperança de que ainda não seja definitivo o abandono, a desistência, e por isso continuo regularmente a regá-la enquanto, em silêncio, lhe peço, não vás.
Não foi ainda desta vez. Ontem, alguém me chamou, venha ver, venha ver. Fui. Aí espreita já a nova vida da minha buganvília. Vai dar-me novos troncos, novas folhas, novas flores. Ano após ano, o desafio prolonga-se, nós as duas acrescentando o calendário, ainda não, ainda não, e a cores da vida a reflorirem. Ainda.

Licínia Quitério

8.5.15

O RACIONAMENTO


Eu era muito pequena quando a guerra acabou, mas lembro-me bem do "racionamento", essa palavra que andava de lar em lar, de boca em boca, e que para mim significava um divertimento diário. Era-me permitido recortar uns quadradinhos de papel azul claro onde estava inscrita uma data e um qualquer número que queria dizer "pão". A minha mãe dizia-me quantos quadradinhos naquele dia eu iria entregar ao padeiro que nos trazia o pão à porta. Lembro-me do boné dele, do chiar da verga do cesto, do sorriso dele a receber com a sua grande mão os quadradinhos da minha mão tão pequenina. Cada família recebia um determinado número de senhas que representavam a ração permitida para os géneros alimentícios. Eu só conhecia bem as senhas do pão, mas havia outras, as do açúcar, as da manteiga e não sei que mais. Aquilo para mim era a guerra e era um tanto divertido. Lembro-me, sim, até porque eu já sabia ler, de notícias que falavam de prisioneiros e de bombas e de ouvir pronunciar lá em casa "campos de concentração", coisas que eu não fazia a mínima ideia o que fossem, mas sei que disso se falava com ar muito triste. Lembro-me de virem para a minha terra umas meninas e os pais delas que tinham estado em Timor e lá tinham sofrido grandes males, como comer cobras, porque outra comida os japoneses não lhes davam, e disso nunca mais me esqueci, e durante algum tempo julguei que os habitantes de Timor se chamavam japoneses. Quando a guerra acabou, o meu pai foi a Lisboa, com amigos, a um almoço de festa na embaixada americana, e, quando voltou, vinha muito contente e até tinha fumado um charuto e a minha mãe dizia que pivete. Lembro-me muito bem de ele contar que um senhor lá da terra tinha querido ir ao almoço e os amigos do meu pai não deixaram, o que eu achei muito esquisito. Só alguns anos depois vim a saber que o senhor tinha sido "colaboracionista", e estava muito rico porque negociara sucata com os alemães, e o meu pai e os amigos não perdoavam essa sujeira. 
Faz hoje setenta anos que a guerra acabou. Eu ainda cá estou, e de verdade pouco mais aprendi sobre as razões do que aconteceu no mundo quando eu era tão pequena. Talvez só tenha percebido melhor quando um dia, muito mais tarde, visitei Auschwitz e li Paul Celan. Mesmo assim, por muitos filmes vistos, por muitos livros lidos, por muitas conversas havidas, nunca entenderei as guerras que são tão más e estão sempre à espera de renascer.

Licínia Quitério

foto da net

3.5.15

A MARCA DO WHISKY


E não é que, ao primeiro toque, a medo, a pensar, vai fazer-me mal, já não devo gostar, que ideia parva, a boca se encheu de um ardor intenso, de um picante a atacar despudoradamente as gengivas, a língua, o arco do palato, e logo logo a abordar a garganta, a descer pelo peito, por fora ou por dentro dele, era o mesmo, a desprender vapores de antigas destilações, de antigos amores. Um festejo inesperado, secretamente desejado, um retorno fugaz, palpável, à juventude, ao tempo da transgressão, do desafio, da atracção quase fatal pelo proibido, pelo desejo anunciado de plenitude e sofrimento. O tempo de pecado, diziam os beatos de vários deuses, que os ateus sorriam, sem aplaudir, sem se atrever. O sabor do whisky a trazer de volta, da arca dos segredos, intocada, a espessura do fumo dos cigarros, muitos cigarros, num acende apaga nervoso, maço atrás de maço, até à tosse, até ao beijo, só o beijo a interromper o fumo, a desfazer o nervosismo dos dedos, a refazer o poder anestésico da concha das mãos em rosto alheio. Entre um e outro beijo, a mão fechada sobre o bojo do copo de vidro grosso, as pedras de gelo a tilintarem, on the rocks, dizia-se, as borbulhas da água, de castelo, dizia-se, bolhinhas malandras a rebentarem no lábio superior, na flor das narinas, num festim de sensações que a levavam a fechar os olhos, a agitar o ar em frente ao rosto, com a mão de dedos curtos, de unhas cortadas rente, quase menina, quase. Pousados os copos, apagados os cigarros, dançava-se, de corpo e rosto ardendo, amando, amando-se, no embalo manso e húmido da música, cantarolando baixinho, respirando muito, fora do compasso da música, fora do compasso do mundo. Abraçavam-se, abraçavam a hora e sabiam já que nenhuma história havia de os acolher. De manhã, cansados do amor, um fastio a anunciar-se no tremor dos ombros, haviam de despedir-se, um beijo leve, depois telefono, sim, a rua com dois sentidos, o dia cinzento, talvez a noite com whisky. De outra marca.

Tão depressa não repete a cena do whisky ao serão. Acordou na manhã seguinte com a boca seca, amarga, um incómodo no estômago. Ao longo do dia, muitas vezes se interrogou sobre o nome da boîte, sobre a marca do whisky. Do nome dele ainda se lembra, sem grande certeza. José Manuel? Carlos Manuel?

Licínia Quitério

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