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31.8.13

DONA CUSTÓDIA

   

   Na loja da dona Custódia havia tudo, cabia tudo, nada se limpava, nada se fiava, nada tinha peso certo, nada tinha preço certo. A montra da loja da dona Custódia era um amontoado de objectos, grandes, pequenos, médios, de caixas, mais ou menos amolgadas, de moscas mortas de tédio, lá pelo meio. A loja onde reinava, absoluta, a dona Custódia, era um armazém de objectos, de sacos, de sacas, de tulhas. No balcão que sobrava dos objectos, dos sacos, das caixas, dos papéis, cabiam a balança e a os braços da dona Custódia que se adiantavam até às mãos dos fregueses a quem pedia que mostrassem o dinheirinho que traziam, antes de aviar a encomendinha. Falava por diminutivos, com ternurinhas de beata, o dinheirinho, a moedinha, meu menino, minha menina, pede mais dinheiro ao paizinho, diz à mãezinha que a Custódia não tem, valha-te nossa senhora, quem não tem dinheirinho não tem vícios. Era assim. Toda a gente ia à loja da dona Custódia, porque lá havia de tudo, de tudo o que mais ninguém tinha, de tudo o que já ninguém supunha que havia. A ratoeira para os malandros dos ratos, o petróleo para o candeeiro, o vidro para o candeeiro que  pum! estalara, o candeeiro, a torcida para embeber no petróleo do candeeiro, o bocal para o candeeiro que o outro estava todo retorcido, os fósforos para dar à luz. Na dona Custódia havia tudo. Muitas vezes, a dona Custódia demorava a fazer o avio, porque não era fácil sacar um vidro de candeeiro que morava na prateleira mais alta, à esquerda de quem entra, mesmo por detrás dos atados de chinelos, e das fitas peganhentas para apanhar moscas. Valha-te deus, menino, que trabalhos estás a dar à Custódia. A dona Custódia roubava no peso, no preço, na qualidade. Toda a gente sabia e gostava. Era assim. Ela tinha tudo o que fazia falta. Menos bondade, lá isso, mas uma pessoa com tanto dinheiro e um marido cobardolas em quem mandar não podia dar-se ao luxo de virtudes para além das que a santa madre igreja ordenava e de cuja falta sempre absolvia, mais padre-nosso, mais dízima à paróquia, mais mordomia pelas festas grandes. Era assim no tempo antigo do fado antigo da dona Custódia de carrapito e óculos de aros negros, redondos, de mãos estendidas para os dinheirinhos dos meninos.


Licínia Quitério
   

29.8.13

OS ANOS


   
Morreu, o cão. Nos seus anos de ser cão, quase duas décadas deviam ter passado. Agora a dona não traz as duas voltas da trela acrescentadas às pulseiras várias e coloridas. Tem mais simetria no andar, mais disponibilidade do braço para ajeitar com elegância o chapéu que faz mudar com as estações do ano. Os olhos, escandalosamente azuis, não dizem dos seus anos de dona. Na falta do velho cão que lhe alentava o passo, adianta-se ainda mais ao dono que envelhece largamente nos seus anos de dono e que tem um braço para a bengala e o outro para os grandes sacos que a dona faz questão de encher de belezas e saudades. Não se consegue saber a que filme pertencem, a que livro, a que quadro, a que história que nos tenham contado. Devem ter-se amado loucamente, saltado barreiras, regressado a conveniências, a velhas caixas. Chegou o tempo, este, de se detestarem. Daí a aspereza com que ela lhe fala, ao sacudir, com as costas das mãos de veias azuis e verniz escarlate, as migalhas de bolo que ele sempre deixa cair na aba do colete de teen-ager. Os olhos dele estão cada dia mais pequenos, mais baços. Tenta acompanhar o andar apressado da sua Miss Daisy mas é obrigado a parar, por momentos, o fôlego a quebrar, a raiva a crescer, a mão na haste da bengala, num simulacro de golpe de Zorro na colecção de cromos, escondida no forro da gaveta da mesa de cabeceira. À vista do fim, o amor torna-se insuportável, sufocante, e vira do avesso onde se lê 
o ódio. Um deles irá à frente, naturalmente, terminada a contagem dos seus dias de gente. O outro chorará, sinceramente, o amor perdido, o tempo perdido, o cão tão bom amigo de homens e mulheres que outras histórias não gostam de contar.

Licínia Quitério

25.8.13

NPV












"Há as couves de pé alto,  há as couves galegas, as portuguesas, as que têm coração de boi,  as mais ou menos farfalhudas, as enfezadas, as que é um gosto vê-las, as frisadas, as pencas, as despencadas, as de bruxelas, as de mais perto, as que nunca passam de repolhos, as chinesas e amarelentas, as couves-propriamente-ditas, as tronchudas, as de trepar até ao primeiro andar, as rasteirinhas, as que pegam de estaca.
Estas, no retrato, são as minhas couves do pé da porta. São as melhores, as mais saborosas, as mais vistosas, as mais simpáticas, as verdadeiras-couves-como-já-não-se-fabricam.
A minha equipa cuidará das couves deste quintal como jamais alguém o fez. Projectará a sua qualidade e beleza ímpares muito para além das fronteiras do meu quintal. Daremos continuidade às boas regas, às boas podas, às boas práticas. À frente da equipa está gente que nunca tocou num adubo químico, que nunca vendeu couve por coelho, que é devotada à causa do quintal como à da sua família.

O nosso slogan: ASSIM SE COMEM AS COUVES.

Vote em nós.

DONA TELA"

Excerto do jornal de campanha do NPV- Novo Partido Vegetal


21.8.13

AS PAREDES AZUIS



   


   Na época, usava-se pintar as paredes de cores fortes. Ele mandou pintar a sala de azul, azulão de mar aberto. Comprou sofás de napa vermelha, móveis em módulos ajustáveis, de linhas rectas. A kitchnette simpática, funcional. Ligou a aparelhagem e ouviu-se música francesa. Na relação com a Conceição, que Nanette se chamava, viera-lhe o interesse pela França. A música, os livros, até a comida. Aprendera a fazer omeletas que, explicava, tinham de ser “baveuses” no interior. Joana olhava em redor da sala, estranhando as cores, os sons, um tremor desusado nas ancas, uma súbita vontade de não estar ou de ficar para sempre. Léo vociferava “je pisse, j’éjacule”. Ele preparava dois uísques. Puro para ele, com soda para ela. Estava calor, o calor das noites belas e ardentes da cidade, nos seus abismos e clausuras. Transpiravam trinta anos de vida, de espanto ainda. Transgrediam, tremiam, mas não se detinham. Dançavam e bebiam e bebiam e dançavam. “Je t’aime moi non plus”, susurrava Jane Birkin. Bem se podia dizer que choravam, tremendo nas cordas finas da ternura. Sabiam da noite única impressa nas paredes azuis, no sofá vermelho, no ligar e desligar do pequeno frigorífico, no chiar do elevador, no tilintar do gelo nos copos.
   No dia seguinte, ele foi buscá-la ao emprego, para almoçarem. Tirou do bolso um gancho de cabelo e disse: deixaste-o no sofá, tens de ter mais cuidado. Sentiu a censura, cortante, a boca fina no beijo rápido, a compressão dos malares.
   Mesmo depois de cortar o cabelo bem curtinho, não voltou à sala com paredes azuis. Houve outras salas, até deixar de haver. Entretanto, a transgressão encorpava nas veias da cidade.


Licínia Quitério

20.8.13

O CAFÉ


   Paguei. Recebi o troco. Tudo certinho. De momento sem mais clientes, o rapaz dedicou-se ao sector financeiro. Uma nota que, presumo, fosse aquela com que lhe paguei, foi enfiada no bolso. A caixa da registadora, que não funciona, foi aberta, com uma leve pressão dos dedos. Dela retirou umas moedas que transferiu para uma caixinha verde, noutra bancada. Acabei de assistir a uma operação corrente. Um investimento em bolsa e o remanescente em off-shore. Encerrada a operação, voltou para o balcão e olhou-me, tranquilo. Percebi que quem me tinha servido o café era o ministro das finanças.

Licínia Quitério 

14.8.13

A VIAGEM



  Há quanto tempo morrera o que chamara A Viagem? Sabia exactamente o dia, a hora. Quatro da tarde, o sol perigoso, o abrigo do guarda-sol de riscas rosa e laranja. A mão na testa suada dele, em toque leve, hesitante. Vamos então? Posso marcar com a agência? Sentiu-lhe o estremecimento. Total, da raíz à copa. Disse não, já marquei. Levantou-se, pegou na toalha, nervoso. Sabes com quem vou. E, quase num grito, é melhor acabarmos com isto de vez. Foi no dia de Verão em que a noite se fez mais cedo, mais escura.
  Olhou o relógio. Eram duas da tarde naquela terra em que o sol chegava uma hora antes. À mesa do almoço, incluído no pacote A Viagem, com mulheres que umas às outras se acompanhavam. As pernas pesadas, cruzadas com esforço. A Viagem estava a ser dura e o calor mordia-lhe as pernas dantes tão bonitas, a soltarem assobios nos olhos dos homens. Fitava a das argolas faiscantes, poderosa ainda. Se fosse como ela, quem sabe pensaria em, como se diz, refazer a vida, desfazer os anos, inaugurar, porque não, uma nova paixão. Foi um relâmpago de desvario que lhe trouxe os olhos azuis, magníficos, estuporados, de Donald Sutherland, no rosto fechado do jovem empregado que lhe atirava vous voulez quoi, Madame? A carne. Estava mal passada, rosada no interior que ela exibia, de garfo e faca assestados na ferida. A Viagem é também aquilo. Decidir, exigir, protestar, silabar Ca-pa-dó-ci-a quando dizem Palma de Maiorca, calar-se quando se erguem os Himalaias na voz maiúscula do Homem-que-já-deu-duas-voltas-ao-mundo.
  Tanto cansaço, tantas horas, tão longe o chapéu de sol às riscas, tão sem sabor A Viagem finalmente ressuscitada, tão diferente da outra, tão mal passada a carne.


Licínia Quitério

11.8.13

A MESA DA MÁQUINA



  A Avó era pequenina, redondinha, airosa ainda no seu traje de viúva. Costurava os seus trapinhos numa máquina de manivela, sem pedal, que assentava numa mesinha de madeira, com um muro baixinho à volta do tampo, não fosse a máquina-só-tronco estremecer e sair mesa fora. A Avó sentava-se numa cadeira que dizia austríaca, de madeira preta, torneada, de assento de palhinha, a que mandara cortar uns bons centímetros de pernas, à medida da altura da Avó, da altura da mesa da máquina.
  A máquina foi-se embora, a Avó também e mais a cadeira. Por artes de partilhas e repartilhas, sem eu dar bem conta, a mesa da máquina-só-tronco veio habitar o meu sótão das coisas sobrantes de vidas encerradas. Por capricho de recolectora de memórias em que me tornei, a mesa, já sem murete, pintada de vermelho, com tampo revestido de linóleo também sobrante de outro tempo, com sua gaveta de fechadura de chave perdida, instalou-se na minha cozinha, em parelha com banco de buraquinho no assento. A máquina deu lugar aos meus vasos de orquídeas, flores desconhecidas no tempo da Avó pequenina, que dava à manivela da máquina, no acerto e transformação de seus bem amados trapinhos.


Licínia Quitério



3.8.13

PELAGENS




   Tomara acabem as férias dele. Para eu ter as minhas. Homens em casa, sabe como é. Isto diz a dona da pelagem loira coberta de uma pasta esbranquiçada que a havia de tornar de um loiro mais aberto, segundo ela declarara à menina cabeleireira. Mal acabara de falar, cala-te boca. O cão ladrou e o dono disse entre portas fica aí. E bico calado. Ficou, a trela amarrada a uma das grades do alpendre, a pelagem cor de café com leite recentemente tosquiada, hirsuta e abundante apenas nas orelhas e na cauda. A t-shirt de manga à cava e os calções deixam escancaradas grandes porções dos membros superiores e inferiores, do peito e das costas, forrados todos de uma pelagem negra, longa e espessa. O fio de ouro, grosso, de malha batida, com crucifixo, brilha pelo meio daquela selva. Uma tentação para a ladroagem. Bem lhe dizia, mas ele ai do filho da mãe que se atreva. Leva que contar. Exemplificava, a mão em cutelo, uma perna atrás, os joelhos flectidos, num arremedo de artes de defesa com nomes impronunciáveis. Um homem pronto para ir à praia, com as suas havaianas verdes, a dar com a t-shirt, essa de um tom mais discreto. Faz rodar, no pulso direito, uma fitinha cor de laranja que diz Porto Galinhas. Este ano, conta ela, compondo o botão que se desabotoara mesmo no meio do peito, ficaram pela Tunísia. Gostaram. A comida é que tinha sido um problema, especialmente para ele que só gosta dos cozinhados dela. O hotel, isso sim, uma lindeza. Até pétalas de flores lhes punham em cima da coberta da cama. Quem não gosta de um luxozinho de vez em quando, replicava a menina cabeleireira, com olhos de telenovela. Ela ajeita na cadeira os quilos a mais, pega no leque e abana-se, com expressão de fastio. Ah o Verão, o Verão. Não veste bata de dona de casa, mas é como se vestisse. Talvez sugestão do padrão do tecido da blusa, miudinho, em fundo escuro, para não se notar tanto a sujidade. A expressão, o gesto, esses são de professora primária, do tempo em que assim se chamavam e a escola assim era. Ele aproxima-se dela, o cão fora do alpendre a pedir festas, a companhia da dona, o rosto perto do dela, a fala num segredo, quase a roçar a pasta de tinta esbranquiçada rente à orelha. Por detrás dos óculos, tem o olhar assustado dos míopes. A careca não condiz com o traje decidido a grandes ares, grandes mares. Ela não deixa que a lamba, concede uma festa ao cão, na área tosquiada, distraidamente, da testa à nuca. Senta-te ali. Aqui fazes-me ainda mais calor. No alpendre há um latido frouxo. Ele vai escorregando pelo braço da cadeira em que se apoiou, escorregando, sentando-se, enroscando-se. Ela grita deixa-te de graças. O latido do cão no alpendre cada vez mais frouxo, mais espaçado.

   No 112 não pode ir o cão, o da pelagem cor de café com leite. Diz a lei.


Licínia Quitério

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