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24.4.08

DONA CLOTILDE (em folhetim)

Fascículo 3º.

Um dia, um colega mais atrevido, conhecedor de pormenores da história através de amigos comuns, disparou de chofre: "Ó Dona Clotilde, como é que a senhora nunca deu por nada? Ali mesmo nas suas barbas, salvo seja!". "Ó senhor Ferreira, como é que me poderia passar pela cabeça que entre pai e filha aqueles carinhos não fossem da maior pureza? Ponha-se no meu lugar. Eu sei que é difícil, mas faça lá um esforço, se me faz favor. O meu Gustavo sempre fora muito meigo, muito dado a festas, a coceguinhas. Não lhe digo? Digo, sim senhor. Ele é e há-de ser, até que a morte nos separe, como jurei perante Deus, no dia do nosso matrimónio, o meu “marrido”!". A voz em flauta, quase em grito. "Pronto, pronto, não se exalte, Dona Clotilde, olhe que lhe sobe a tensão e depois lá vai de charola como daquela vez. E fui eu que a carreguei, lembra-se? Safa, como a Senhora pesa, embora não pareça, lá isso é uma verdade. O certo é que ainda hoje, quando há mudança de tempo, o meu joelho direito começa logo aos estalos. E foi desde aí, não haja a menor dúvida. Que fique para desconto dos meus pecados, mas não conte comigo para mais nenhuma alhada desse tipo.".
Conversas sobre este assunto não eram frequentes, mas, quando aconteciam, Dona Clotilde parecia perpassada por um diabinho que vivia dentro dela, e que então se deixava avistar, num ápice, como um pequenino luzeiro, no fundo dos olhos cor de avelã, ao mesmo tempo que o corpo dela se contorcia, ligeira, muito ligeiramente.

A vida levou uma volta, se levou.
Quando os apanhou em flagrante delito, no seu próprio quarto, no seu próprio leito, num desaforo, foi como se uma bomba buum! lhe rebentasse dentro da cabeça. Dizia que verdadeiramente tinha perdido a inocência naquele instante. Então viu tudo. Tinham criado, no seu seio, uma víbora (ou serpente, confundia sempre) venenosa, traiçoeira. Com aquele arzinho de menina pudica e grata aos seus Pais, afinal era a própria tentação, o pecado. Com a Bíblia sempre à cabeceira, como é que ela, Dona Clotilde, tão apreciadora dos textos sagrados, de que sabia de cor muitas passagens, principalmente do Livro dos Salmos, não fora capaz de ver que, no seu Jardim do Éden, Satanás se preparava para actuar, para levar o Tavinho a morder a maçã rosada e carnuda em que aquela criança se transformara, ali mesmo debaixo dos seus olhos de mãe extremosa? "Pois, estava-lhe na massa do sangue. Herdou daquela p…, desculpe, senhor Ferreira, que a palavra ia-me saindo. Sim, quem sai aos seus… Ele há coisas!". Silenciava uns instantes, a remoer migalhas da dor que lhe ficara a “atazanar” a alma, como dizia o seu falecido Padrinho. Mas o Ferreira, de olhinho pequeno, a brilhar de gozo, voltava à carga: "Confesse, Dona Clotilde, que a senhora andava muito distraída. Então eles disfarçavam assim tão bem? Olhe que, se dizem que as mulheres têm um sexto sentido, a senhora pelo menos deve ter perdido o faro. Desculpe, sem ofensa.". "Não me diga mais nada, senhor Ferreira. É melhor pararmos a conversa por aqui, que eu, quando falo disto, sinto que fico “forra” de mim e sou capaz de lhe dizer alguma coisa de que o senhor não goste.".

continua...


Licínia Quitério

15.4.08

DONA CLOTILDE (em folhetim)

Fascículo 2º.

Paixão é paixão, os ouvidos só ouvem o que querem ouvir, e o namoro prosseguiu e aqueceu, mau grado os avisos constantes do Padrinho: "Olha que esse Fulano não é flor que se cheire. Aquelas falinhas mansas escondem alguma tramóia. Tu és uma criança, não sabes nada da vida. Depois não digas que não te avisei.".
Que não, Padrinho, o Gustavo era um anjo que descera à Terra para a fazer feliz.
"Olha, Filha, estou cansado de gastar palavras sobre este assunto... Nunca te esqueças de que quem fizer ruim cama nela se deita.".
Choramingou, soltou ais do fundo da sua alma em rebuliço. Tinha tanta pena que a alegria dela não contagiasse o seu protector! Mas não perdeu muito tempo com lamentos. Após os preparativos algo apressados, fez mesmo a cama, deitou-se nela e gostou.
Era finalmente uma senhora casada com um pedaço de homem que só de o olhar sentia os braços em pele de galinha.
Para que a felicidade fosse completa naquele lar, só faltavam mesmo as risadas de crianças, no plural, que filhos, ter só um, é como não ter nenhum.
Mas o destino pregou-lhes a partida. Apesar de todas as ardências partilhadas com assiduidades convenientes, (mas sem deboches, que o Tavinho sabia respeitar o recato próprio duma esposa amantíssima) o tão desejado rebento tardava e os pais putativos desesperavam.
O destino, sempre o destino, (digam o que disserem já nascemos com ele traçado) colocou-lhes nos braços uma pobre criança, rejeitada pela mãe, uma perdida, indigna desse sagrado nome. Piores que os animais, que esses lutam para não perderem as crias. A princípio, ainda hesitaram. Era uma responsabilidade muito grande. Levar para casa uma criança não é o mesmo que comprar um canário ou mesmo um cãozinho. É um ser humano que precisa de amor, de educação e de boa alimentação. Não era por isso uma decisão a tomar levianamente. Falaram muito sobre o assunto, quantas vezes agarradinhos um ao outro, sem saber se haviam de chorar se de rir. Mas parece que Deus os chamava para uma missão, sem dúvida nenhuma, nobre. E o anjinho era lindo, uma menina de poucos meses que fazia “dádádá prrrr” quando lhe afloravam o narizito com o indicador. Como resistir? Não era carne da carne deles, mas tinham todo o amor deste mundo para lhe dar.
O processo de adopção ainda teve os seus quês. Valeu-lhes a simpatia do senhor doutor Justino que, a troco de algum dinheiro, bem entendido, nada se faz sem dinheiro, deu por eles todas as voltas necessárias, que foram muitas, e tratou da papelada que parecia não ter fim. O certo é que, ao fim de menos de um ano, conseguiram ter, à face da lei, a filha que Deus não quisera chegasse por outros meios. Filha de Gustavo de Sousa Paiva e de Clotilde da Conceição Correia Sousa Paiva, assim passou a fazer parte das suas vidas a Fatinha, afilhada de Nossa Senhora do Rosário de Fátima. Dona Clotilde sentia-se em estado de graça, abençoada pelo amor da Terra e dos Céus.
Na escola, Fatinha só deu alegrias aos Pais. Boa aluna, embora sem grandes brilhos, bem comportada, respeitadora dos senhores professores a quem levava prendinhas pelo Natal e pela Páscoa. Pouco amiga de brincadeiras arrapazadas, quase não sujava as batitas de colarinhos brancos, tesos de goma. Já no liceu, o corpito começou em estremecimentos anunciadores de floração próxima. Dona Clotilde sentiu uma estranha angústia quando a sua menina anunciou que já era senhora, o que significava o despertar confuso da mulher com toda a sua corte de espantos e explosões. Nesse exacto dia, iniciou uma novena à Virgem Nossa Senhora, para que, dentro das regras do negócio divino, a Imaculada guardasse Fatinha das tentações do mundo, cheio de lobos à espreita de cordeiros tenrinhos.

continua...

Licínia Quitério

6.4.08

DONA CLOTILDE (em folhetim)

Fascículo 1º.

A Dona Clotilde era madurona. O cabelo pintado de negro, avolumado por muita laca, com transparências indiscretas (peladas, não senhor, coisas dos nervos que apanhara). Os lábios, pintados de escarlate, ganhavam a forma de um coração em caixa de bombons. Passada que fora a beleza consentida pela frescura dos anos, ficara-lhe o ar de boneca de papelão abandonada em sótão, um pouco amachucada, mas ainda colorida e risonha. Mamalhuda, de perninha fina, sempre encavalitada em saltos altos, inclinava-se para a frente ao andar, lembrando um patito fora do charco. A propósito de alguma referência brejeira à abundância e proeminência mamárias, confidenciava, com indisfarçável orgulho, que, ao contrário de muitas mulheres da sua idade, tinha de usar coletes especiais, feitos por si, de forma a contrariarem a indiscreta tendência de subida dos peitos. Ao dizer “peitos”, corava ligeiramente. Vinham-lhe à memória elogios marotos do Tavinho.
Acalentava um sonho que a fazia amealhar os parcos tostões sobrantes do trabalho no escritório. Havia de ter o seu próprio negócio, coisinha pouca, para principiar. Uma espécie de capelista, nome que já quase só ela usava. Explicava que se tratava de uma loja pequenina, de vão-de-escada talvez, a vender umas revistas, uns macitos de tabaco, uns brinquedos de plástico, uns chupa-chupas e o mais que o espaço e a inspiração permitissem.
Fazia o seu dia a dia no escritório com boa disposição, risadinhas semi-fechadas, para não desfazer as comissuras do coração. Cabia-lhe, como principal função, abrir e fechar o correio. Muito metódica, obcecada por arrumações e simetrias, manejava com segurança e destreza facas abridoras de envelopes, agrafadores, desagrafadores, novelos de cordel encerado, tesouras, balanças sensíveis ao grama (dizia com ênfase “o” grama), tubos de cola de várias marcas e até, quando o progresso se fez notar, uma máquina de franquiar. Retirava os selos que chegavam das mais distantes paragens para engrossarem a colecção do patrão que por eles esperava, com impaciência. “Não demorra nada, senhorr doutorr”. Carregava nos “erres”, mas fazia questão de esclarecer não ter nada a ver com Setúbal. O Padrinho, senhor finíssimo e rico, que a criara com esmeros de bordados, piano e francês, falava assim. Não lhe herdara os bens (que Deus tivesse a sua alma em descanso), mas os “erres” e as boas maneiras.
Ao fim do dia, lavava escrupulosamente, com um papel embebido em álcool, o tampo da secretária e arrumava as ferramentas do ofício, em alinhamento de exército pronto para a batalha do dia seguinte. Transportava, num saco de napa castanha com fecho “éclair”, entre outros artigos de higiene (coisas íntimas, de senhoras), a escova de dentes, o copo de plástico e a pasta medicinal. Prezava a dentadura, muito certinha e ainda completa, e lavava-a após cada refeição, por muito ligeira que fosse, escovando-a em vários sentidos e direcções, um número exacto de vezes. As necessárias. “São as minhas pérrolas.”. E pestanejava, enlevada.
Falava, várias vezes por dia, do “marrido”. Apesar das circunstâncias bizarras, continuava a ser, para o bem e para o mal, na alegria e na tristeza, o seu esposo, o seu homem, o único que conhecera na vida e por quem se apaixonara na verdura da juventude de menina recatada. O Padrinho, (Deus lhe perdoe), não gostou do cavalheiro. Suspeitava que o bigodinho à cinéfilo, que lhe provocava sonhos eróticos, escondia interesse por dote que aconchegasse aquele pedaço ardente de castidade. Caturrices de velho, pensou. Pergintava-se como podia uma pessoa boa como o Padrinho ser levado a ter pensamentos tão horríveis sobre aquele Príncipe que, era bem de ver, além de bonito, tivera educação esmerada, rara mesmo nos tempos que correm.

continua...

Licínia Quitério

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