Fascículo último
De há uns tempos para cá, o barbeiro começara a vir almoçar a casa. A mulher deixava-lhe tudo arranjadinho, mesa posta, era só aquecer. Por que raio havia de comer na tasca, se trabalhava a dois passos de casa? Melhor para a saúde e para a bolsa. Um dia destes, quando tentou acender o bico do gás… nada. Pensou: Os patifes fecharam o gás sem avisar. Experimentou o esquentador. Acendeu à primeira. Diacho! O filho da mãe do fogão deu o berro. Agora já nada dura. Tudo uma trampa. O que é que eu faço? Comida fria não era com ele. Mais a mais feijoada à moda da Terra. De repente, lembrou-se. Talvez a vizinha Elvina o desenrascasse. Ganhou coragem, tocou à campainha. Ela espreitou pelo ralo da porta. Nem queria acreditar. Num reflexo, compôs o avental e prendeu o cabelo atrás da nuca, com um travessão em forma de borboleta que trazia no bolso.
Nunca seria capaz de contar quanto tempo mediou entre o poisar do tacho sobre o fogão (que não chegou a acender) e o beijo sôfrego de encontro à porta do quarto, ela sem travessão, ele com o nó da gravata desfeito.
Foi precisamente numa quinta-feira que a mulher do barbeiro voltou mais cedo da Escola. A chefe não fora ao serviço, ela precisava tanto de limpar o tecto do corredor, a porcaria das casas velhas nunca se dá conta delas, os fins de semana não chegam para nada, e a colega disse-lhe: Ó mulher, pira-te que ninguém vai dar por nada. E pirou-se mesmo, com um bocadinho de remorsos por, pela primeira vez em catorze anos, ter alinhado numa escapadela.
Quando a Felismina viu o marido a compor o cabelo desalinhado, a sair da casa daquela perdida, o sangue subiu-lhe todinho à cabeça, trepou o lance de escadas a dois e dois, entrou em casa, foi direita à gaveta grande do armário, pegou na faca grande de desossar e gritou, gritou, desalmadamente, enquanto esfaqueava, repetidas vezes, a porta fechada da Elvina, por trás da qual tremiam, como varas enquanto verdes, um barbeiro baixinho e bem cheiroso e uma ruiva cansada de passeatas em jardins de Domingo.
Nunca seria capaz de contar quanto tempo mediou entre o poisar do tacho sobre o fogão (que não chegou a acender) e o beijo sôfrego de encontro à porta do quarto, ela sem travessão, ele com o nó da gravata desfeito.
Foi precisamente numa quinta-feira que a mulher do barbeiro voltou mais cedo da Escola. A chefe não fora ao serviço, ela precisava tanto de limpar o tecto do corredor, a porcaria das casas velhas nunca se dá conta delas, os fins de semana não chegam para nada, e a colega disse-lhe: Ó mulher, pira-te que ninguém vai dar por nada. E pirou-se mesmo, com um bocadinho de remorsos por, pela primeira vez em catorze anos, ter alinhado numa escapadela.
Quando a Felismina viu o marido a compor o cabelo desalinhado, a sair da casa daquela perdida, o sangue subiu-lhe todinho à cabeça, trepou o lance de escadas a dois e dois, entrou em casa, foi direita à gaveta grande do armário, pegou na faca grande de desossar e gritou, gritou, desalmadamente, enquanto esfaqueava, repetidas vezes, a porta fechada da Elvina, por trás da qual tremiam, como varas enquanto verdes, um barbeiro baixinho e bem cheiroso e uma ruiva cansada de passeatas em jardins de Domingo.
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Junto ao Tem-Tudo, os comentários multiplicavam-se. O Senhor Amaral, com a mão em concha no ouvido maroto, perguntou: O que é que ela diz? Tira-lhe o quê? As tripas, homem, as tripas, explicou o Senhor António, sem abandonar a soleira. Até o Feliciano largou do talho, esbaforido, com um cutelo na mão. A D. Rosa, rente ao passeio, avistou-lhe o aventalão manchado de sangue, e chiou: Ai Jesus! Acudam! A D. Amália puxou do seu sentido prático e avisou: Vou chamar a polícia. Antes que haja uma desgraça. O Zeca limitou-se a torcer a orelha e a dizer: Já agora espero que venha a bófia. A minha mãe deve ter mais fósforos lá em casa.
FIM
Licínia Quitério